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A poesia da prosa

26 de setembro de 2024

O dia que te conheci, de André Novais Oliveira, é um pequeno grande filme. Pequeno na duração (71 minutos) e na modéstia da produção, grande na inteligência, na sensibilidade, na inefável poesia audiovisual.

O filme se apresenta como uma “comédia romântica”, e seu cartaz mimetiza as produções do gênero, sugerindo a enésima versão do esquema boy meets girl, em que um homem e uma mulher que em princípio não se bicam acabam descobrindo que foram feitos um para o outro.

Mas se trata de uma ironia matreira: em vez de se encaixar nos códigos e clichês do gênero, André Novais os subverte e os recria em seus próprios termos. Sim, há romance (ou o esboço de um) e há humor em O dia que te conheci. Mas ambos brotam de um terreno que nada tem a ver com as fórmulas hollywoodianas.

 

Percepção do tempo

A começar pelo tempo e sua percepção. Tudo começa com uma conversa sobre a dificuldade do bibliotecário Zeca (Renato Novaes, irmão do diretor) em acordar cedo para chegar a tempo à escola pública onde trabalha. Dessa circunstância nasce todo o filme, que cobrirá um dia e uma noite na vida do personagem. Nessas vinte e quatro horas, condensadas nos 71 minutos do filme, Zeca perderá o emprego e ganhará um amor, ou ao menos a promessa de um.

Por trás da aparente simplicidade do entrecho, e da quase ausência de grandes acontecimentos dramáticos, há uma ciência delicada de observação dos seres, das coisas e dos lugares.

O dia abordado é, por um lado, trivial, igual a tantos outros: a corrida para pegar o ônibus, o trabalho na biblioteca, a conversa à toa na calçada sobre grafites retratando figuras famosas, a cerveja tomada em pé diante de um bar. Ao mesmo tempo, é um dia único, singular, em que cada pequeno acaso desencadeia uma novidade, uma descoberta: o ônibus que quebra no meio do caminho leva ao pastel devorado às pressas com um novo amigo; a conversa sobre a demissão do emprego suscita a aproximação afetiva com uma colega de trabalho (Grace Passô), e assim por diante.

Mas talvez a originalidade do filme não esteja tanto na progressão narrativa, na miríade de pequenos acasos que compõem as horas de um dia na grande cidade (no caso, a região metropolitana de Belo Horizonte), mas na maneira de olhar para eles. Com planos quase sempre fixos e dilatados, o diretor nos propicia o tempo e o espaço para observar cada detalhe, assimilar cada palavra, sem o atropelo das narrativas convencionais, que empurram o espectador para uma leitura unívoca do mundo.

André Novais é também um mestre discreto dos planos curtos, ditos “de cobertura” ou “de ligação”, introduzidos sutilmente entre as cenas mais longas: um vasinho de planta com a cara do Shrek, um gatinho que balança o rabo no painel de um carro etc. Essas imagens não servem para “fazer avançar a narrativa”, mas são toques de humor e poesia que contribuem quase imperceptivelmente para a criação de uma ambiência emocional, um estado de espírito.

 

Riqueza humana

Não há aqui a ânsia de tudo explicar, de tudo julgar, de indicar ao público o que deve sentir. Um exemplo singelo: no ônibus, Zeca estica discretamente o pescoço para bisbilhotar o celular manuseado pelo passageiro à sua frente. O homem rola pela tela imagens de uma (ou mais de uma) criança pequena. Pode ser um pai amoroso, mas pode também ser um pedófilo. Nunca saberemos. A vida é cheia de pontas soltas.

Assim como as imagens, os diálogos escondem mineiramente por trás de sua aparente banalidade uma riqueza humana insuspeitada. Uma conversa corriqueira sobre remédios para depressão pode revelar a afinidade entre duas possíveis almas gêmeas.

Encontrar o poético no prosaico, o sublime no cotidiano, é uma virtude rara em qualquer arte. No cinema, é possível pensar em Ozu, em Kiarostami, em Hong Sang-soo. É a essa estirpe que pertence André Novais, com sua estética própria, sua sensibilidade única, seu sotaque pessoal e intransferível. Todos os seus filmes, no fundo, são filmes de amor. Sua aldeia é a periferia proletária da Grande BH. Ao cantá-la ele canta o mundo, como queria Tolstoi.

Faltou dizer que a trilha musical, de Djonga e Luedji Luna a Alaíde Costa, passando pelo compositor erudito afro-americano William Grant Still, é usada de forma precisa e discreta, potencializando a poesia do conjunto sem direcionar a emoção do espectador. Beleza pura.