Não é arriscado dizer que O homem cordial, de Iberê Carvalho, é um dos filmes mais importantes do ano, pelo modo consistente e original como aborda nossas fraturas sociais crônicas e feridas históricas não cicatrizadas com uma narrativa vibrante e num contexto absolutamente atual.
Um resumo drástico do entrecho: Aurélio (Paulo Miklos), cantor de uma banda de rock paulistana, vê na rua um menino negro, Mateus (Felipe Kenji) ser ameaçado por uma turba e intervém em sua defesa. Na confusão que se segue, um policial à paisana é morto e o garoto desaparece. Imediatamente, por obra das redes sociais, Aurélio é linchado virtualmente, acusado de assassino de policiais e defensor de bandidos.
Mergulho no inferno
A forma como essa história é construída na tela é que é notável. Depois de um show em que é hostilizado pela plateia, Aurélio ingressa (ou antes, cai) numa longa noite, filmada de modo contínuo, a simular o tempo real. É como um pesadelo ou um mergulho no inferno em que se desvela, círculo após círculo, uma cidade alucinada, um concentrado de país cindido e violento. Desde O invasor (2001), de Beto Brant, São Paulo não era palco de uma investigação tão profunda e devastadora.
Em sua longa jornada noite adentro, Aurélio caminha a pé por ruas degradadas, fica sem celular e sem dinheiro, viaja de ônibus, de moto e de carro. É acossado por um grupo de playboys de extrema-direita armados de câmeras de celular e discursos de ódio, mas também é confrontado por moradores de periferia por ser um homem branco de classe média, herdeiro de séculos de privilégio, querendo falar em nome dos pretos e pobres. Aprende pelo método difícil que as contradições brasileiras não se resumem a direita x esquerda e tampouco a civilidade x violência policial.
Iberê Carvalho filma essa viagem predominantemente em planos contínuos, muitas vezes com câmera na mão, acentuando a instabilidade da situação e a vulnerabilidade do protagonista. Há perigo em cada esquina, em cada vulto, em cada nova situação.
Violência de classe
Em contraste com a noite que parece não terminar, a segunda parte do filme, bem mais curta, é uma sequência diurna reconstituindo o que teria acontecido antes (e imediatamente depois) da confusão com o menino negro. Mas mesmo essa revelação não é conclusiva. Ficamos sabendo mais o que não aconteceu do que o que se passou de fato. Mas é o bastante para iluminar outros aspectos do nosso esgarçado tecido social.
Numa das cenas mais eloquentes, Mateus vai entregar num prédio chique uma roupa encomendada por uma cliente de sua mãe. Depois de tocar o interfone e abrir o primeiro portão, ele fica longos minutos preso naquele infame cercadinho gradeado entre portões, até a compradora descer para pegar a encomenda, desculpar-se por estar sem dinheiro no momento e mandar um beijo para a mãe de Mateus, de quem sente “muita saudade”. A mulher nem percebe que por trás de sua cordialidade sorridente se esconde uma atávica violência de classe. O menino sai dali meio aturdido, sem dinheiro para tomar o ônibus de volta para casa.
Cabe aqui o cotejo entre duas cenas. Quando fica a pé e sem dinheiro, Aurélio aborda um ônibus, conta sua situação ao motorista e este deixa que ele viaje sem pagar. O menino Mateus, por sua vez, faz menção de entrar pela porta da saída de um ônibus, mas desiste e passa a pedir dinheiro envergonhadamente em mesas de restaurantes, sendo sempre rechaçado. Mais que os diálogos, são cenas assim que escancaram no filme os vários mundos sociais que convivem, nem sempre harmoniosamente, na metrópole.
Papel da internet
A atualidade mais evidente do filme se mostra no papel crucial desempenhado pela internet e pelas câmeras de celular, para o bem e para o mal. A difusão imediata de imagens facilita a propagação do ódio e suscita linchamentos virtuais (e muitas vezes reais), mas também pode refrear a brutalidade extrema. Aurélio e seus amigos experimentarão na pele esses dois sortilégios opostos.
Haverá ainda muito a ser dito sobre esse filme marcante, que foi rodado em 2019 e só agora chega aos cinemas depois de ter conquistado prêmios no Brasil e no exterior, principalmente para a ótima atuação de Paulo Miklos. O roteiro foi escrito em parceria pelo diretor e pelo cineasta uruguaio Pablo Stoll, realizador de 25 watts, Whisky e Hiroshima, entre outros.
Cabe aqui uma última palavra sobre o título, que recicla de modo irônico a célebre expressão de Sérgio Buarque de Holanda no clássico Raízes do Brasil. Para o historiador, “cordial” não é o brasileiro bonzinho ou gentil, mas aquele que age mais pelo coração (cor, cordis) do que pela razão, e para o qual as leis valem menos que as relações pessoais e de parentesco. Dessa perspectiva, o Brasil não é o país de pessoas afáveis, mas sim do “jeitinho”, do “quebra essa”, do “sabe com quem está falando?” e do “ponha-se no seu lugar”. É esse país torto e cruel que O homem cordial retrata com engenho e arte.