Se há uma dúzia de clássicos obrigatórios para um curso de história do cinema, Rashomon certamente está entre eles. O filme, de 1950, ganhou o Leão de Ouro em Veneza e o Oscar de produção estrangeira, abrindo as portas do mercado internacional para seu diretor, Akira Kurosawa. Sete décadas depois de realizado, ele chega ao streaming no canal Belas Artes à la carte e atesta que seu brilho continua intacto.
Inspirado em dois contos do escritor Ryunosuke Akutagawa (1892-1927), Rashomon é ambientado no Japão do século 11 e conta uma história brutal: num bosque, um bandido famigerado, Tajomaru (Toshiro Mifune), ataca um nobre samurai (Masayuki Mori) e sua esposa (Machiko Kyo), estuprando a mulher e assassinando o marido.
Esse evento é narrado alternadamente por quatro pessoas diferentes: o bandido, a mulher estuprada, um lenhador que testemunhou parte da cena (Takashi Shimura) e o espírito do samurai morto, este último por meio de uma feiticeira em transe mediúnico. Cada um dos relatos difere dos outros. Mais que isso: são versões contraditórias e excludentes. O que é narrado depende do olhar de quem narra, de seu ângulo de visão – de seu “lugar de fala”, para usar uma expressão corrente.
Relatos de segunda mão
Para tornar ainda mais precário o substrato de verdade das narrativas, três delas (do bandido, da mulher e do samurai) nos chegam “de segunda mão”, relatadas – e filtradas – pelos personagens do lenhador e de um monge (Minoru Chiaki), que as ouviram no palácio de justiça e conversam sobre o assunto com um vagabundo (Kichijiro Ueda) sob o grande portal em ruínas de Rashomon.
É esse entrechoque de versões que torna Rashomon um filme paradigmático e um dos mais influentes de todo o cinema. Assim como dizemos que, ao contar suas memórias de infância, “Fulano fez seu Amarcord”, também é comum, quando se trata da reconstituição de um fato a partir de pontos de vista alternativos, dizermos que é “tipo Rashomon”.
Não é uma estrutura meramente esquemática, abstrata, mas um processo de revelação gradual dos personagens e suas interações, que por sua vez lança luz sobre contradições sociais mais amplas, relações entre os gêneros, concepções morais, etc. É, no fundo, uma parábola sobre egoísmo e compaixão. Como em tantos outros de seus filmes, Kurosawa está interessado em investigar o estofo moral dos indivíduos e a possibilidade de existência de uma humanidade mais fraterna.
Chama a atenção a habilidade do cineasta em filmar a natureza e seus fenômenos, contrastando a imobilidade do imenso portal sob a chuva e a floresta sempre em movimento sob o sol. O tempo nervoso do drama e o tempo mais reflexivo e soturno do relato posterior.
Atmosfera onírica
Na reconstituição dos eventos, vai-se criando uma atmosfera quase onírica, reforçada pela música hipnótica de Fumio Hayasaka, que canibaliza o Bolero de Ravel com outra orquestração e andamento ligeiramente modificado, e também pela cintilação do sol entre as folhagens do bosque. O ápice desse procedimento é a cena do beijo forçado do bandido na mulher, ocasião em que a câmera aponta diretamente para o sol, o que era considerado um tabu até então. A sensação de vertigem dessa contraluz é imediata.
O caráter indireto e subjetivo dos relatos permite uma grande maleabilidade da encenação, sobretudo no que diz respeito à representação dos atores. Mifune, como o bandido Tajomaru, atua num registro aparentemente exagerado, acrobático, quase circense, misturando teatro e dança no seu gestual, parecendo às vezes um demônio da floresta. O samurai, na maior parte do tempo, tem uma atitude minimalista, impassível, de poucos gestos e expressões. A mulher oscila entre a fragilidade silenciosa e a loucura estridente.
Num mundo rigidamente ritualizado nas roupas e nos gestos, o personagem insolente e seminu do bandido é uma perturbadora irrupção de sensualidade. As lutas de espada são coreografias inverossímeis, com os dois homens golpeando o ar, tropeçando em si mesmos. Nada parece “de verdade”, sobretudo em comparação com o suposto naturalismo das refregas hollywoodianas.
Tensão dentro do quadro
Soma-se a isso, ou melhor, perpassa tudo isso a maestria de Kurosawa em termos de enquadramento e composição. Há uma recorrência de planos com três personagens em quadro: os três do confronto no bosque, os três que conversam sobre os eventos no portal de Rashomon. A disposição espacial deles, lançando mão da profundidade de campo, é quase sempre expressiva de uma situação psicológica ou moral.
Por exemplo: num dos relatos, há um enquadramento em que o marido aparece de costas, em primeiro plano, o bandido no fundo do quadro, de frente, e a mulher no meio, jogada ao chão, numa posição inferior, como se estivesse num buraco. Na mesma sequência, pouco depois, há quase uma inversão: vemos a mulher no chão por entre as pernas do bandido, que está de costas em primeiro plano, e no fundo do quadro o marido. A tensão entre os seres parece fazer vibrar as linhas imaginárias entre seus corpos.
No trânsito entre o mundo espiritual e o mundo físico, em que este busca traduzir aquele, o “problema” de Kurosawa, muitas vezes, é explicitar demais nos diálogos seu posicionamento moral, sua aposta última na possibilidade da bondade humana. Em Rashomon isso por pouco não acontece na cena final. Vale a pena deixar em segundo plano o diálogo edificante e atentar para o mundo que parece renascer junto com o sol depois da chuva e da tragédia, sob o choro de um bebê de poucos dias. É na imagem que o humanismo profundo de Kurosawa se expressa de modo mais arrebatador.