- A relação entre o desenvolvimento da modernidade no cinema e o cinema barato, B, de exploração, é ao mesmo tempo indissociável e complexa. Se, por um lado, é inegável que os cinemas novos e modernos reconhecidos como tal transformam em maneirismo as subversões forjadas nos seios do cinema comercial, nessa transposição, perde-se algo importante no processo, que é uma certa discrição que os sabotadores do filme barato necessitam ter.
- Pois em qualquer cinema de exploração, de gênero, há regras para cumprir, com os financiadores e com seu público. Portanto, é sempre uma tarefa dupla: entreter e subverter, ao mesmo tempo, trabalhando simultaneamente em camadas variadas, numa espécie de inframodernidade, cujos exemplos estrangeiros são muito mais compreendidos que os dos nossos artesãos locais.
- Quando se discute cinema de gênero, raramente usamos como referência filões brasileiros, como a comédia musical, o filme de crime/violência urbana e os mais variados subgêneros de filme erótico. Nos anos 1970 e 1980, em São Paulo, foram produzidos dezenas de filmes que, dentro do heterogêneo rótulo do cinema erótico, realizaram essa “tarefa dupla” de modo brilhante. Em geral, tais obras têm como matriz o conjunto de produtoras e salas de exibição do centro da capital paulista, apelidado Boca do Lixo.
- A Galante Produções era uma das principais produtoras desse complexo e é a responsável pela realização de O paraíso proibido, um dos três trabalhos capitaneadas por Carlos Reichenbach, em associação com essa empresa mítica em seu ramo. A fórmula era simples: poucos dias de filmagem, alguma nudez feminina em cada rolo de filme e, dentro disso, liberdade total de realização.
- Em entrevista a Ruth Viana, em 1984, o diretor declara: “O paraíso proibido não foi uma fita encomendada como pornochanchada. Ao contrário, foi encomendado como filme romântico. Romântico à minha maneira: personagens destrambelhados, com problemas existenciais, um filme muito mais pra baixo do que pra cima. E esses três filmes eu fiz com o produtor mais tradicional da Boca do Lixo, que é o Antonio Polo Galante. Ao mesmo tempo que me dava poucas condições de filmagens, ou seja, condições mínimas, e todas as condições razoáveis, eu tinha toda a liberdade de fazer o que eu quisesse. Coisa que às vezes não tinha no financiamento oficial. O que importava mais era eu ter liberdade de fazer absoluta, de fazer o filme do jeito que eu quisesse. Mesmo que eu tivesse que abrir, que fazer concessão, concessão a nível de título do filme, a nível de elenco, mas desde que deixasse eu filmar do jeito que eu quisesse, a contar a história do jeito que eu quisesse, a montar o filme do jeito que eu quisesse, não tendo interferência – como não tive nenhuma – a nível de realização.”
- Dessa forma, Reichenbach trabalha em condições ao mesmo tempo radicalmente autorais e radicalmente comerciais. Ele mesmo dirige, fotografa e monta. E, assim como em vários outros de seus longas, o homem em crise, que é o centro da narrativa, pode ser visto como sua projeção. O radialista Celso Félix, vivido por Jonas Bloch, trabalha na pequena Rádio Progresso, e seu problema é que ele não quer progredir, não quer “algo mais”. Ele quer ficar pequeno, ter uma vida calma. Em uma de suas primeiras falas, diz, nos microfones da rádio: “Nem só de trabalho vive o homem, vamos se divertir, gente”. O problema é que Celso é um homem que “sente demais”, e todas as interações que o filme narra o alteram, e de alguma forma o dissuadem de seu caminho.
- Mesmo num filme dramaticamente espiralado, como O paraíso proibido, podemos dizer que o centro disparador do conflito de base do filme é o encontro de Celso com Rivaldo (Luis Carlos Braga), seu amigo antigo de rádio, que quer envolver Celso numa jogada ambiciosa, que envolve seu patrão da Rádio Progresso. A tensão trabalho/vida íntima atravessa todo o filme, pontuada pelo sexo. Porém, como no trabalho de encenação no filme em geral, há um esforço constante de uma certa serenidade cênica. Assim como observou Ruy Gardnier na revista Contracampo sobre o italiano Valerio Zurlini (inspiração declarada do cinema de Reichenbach, aqui, em específico, A primeira noite de tranquilidade, de 1972), o trabalho de encenação faz um exercício dissociativo em relação à realidade emocional da cena. O sexo e as grande emoções são filmadas, na maioria das vezes, com uma deliberada distância. Não um distanciamento frio, entomológico, mas produtor de um certo efeito de medida e modulação. Ao mesmo tempo, momentos muito prosaicos, como um final de festa, em que um empregado bêbado saindo da casa do patrão se deita no chão de areia, uma mulher se despede do patrão com um beijo na boca, e, enquanto este entra em seu carro, ela vai em direção ao outro carro e embarca com o seu marido, tudo filmado em fluído plano-sequência. O ápice da crise do radialista, em um belo travelling à beira-mar, é filmado em quadro aberto, culminando num final cômico, quando, de cuecas, ele encontra alguns políticos locais conversando com seu colega de trabalho, após uma corrida potencialmente suicida.
- O trabalho de Reichenbach parece ser o da anatomia precisa e incerta dos sentimentos de seus personagens – portanto, sentimentos de uma época. É o começo dos anos 1980, momento em que o capitalismo aperta os cintos e vai se consolidando como única realidade possível. E ele é escravo do crescimento e da ambição, da exploração. Entretanto, o cinema da Boca, exploitation, em sua constante afirmação artesanal e sacana, apesar de ser um produto ali altamente vendável (esse conjunto de filmes de Reichenbach foi uma empreitada lucrativa para Galante), era também um cinema de resistência, da ambígua afirmação de um outro tipo de valor e descontrole. E a escolha do metapersonagem comunicador sublinha esse aspecto. Celso quer ficar “pequeno”, mas isso lhe custa imensamente, pois não é aceito nem compreendido em um mundo de ganância desenfreada.
- Entretanto, isso não quer dizer que o radialista é um poço de virtudes e honra. De modo algum. Todos os personagens são moralmente errantes, impulsivos, intempestivos, frágeis e vulneráveis. A tal anatomia realizada por Reichenbach só descobre a mesma coisa, sempre diferente: somos todos peças de engrenagens maiores, tentando encontrar a nós mesmos, mas a resposta nunca chega; portanto, vamos atritando em quem se aproxima, em tesão, desilusão e fúria, e quem sabe, algum lampejo de amor e tranquilidade pode aparecer.
- No início da cena auge da crise do personagem de Jonas Bloch, compondo mais uma das belas e discretas composições do fotógrafo Reichenbach, aparece um poste onde está pichado: “É proibido subir”. O espaço do drama tem contornos de classe. A radiografia de uma sensibilidade da classe média e popular brasileira é uma obsessão para o diretor do início ao fim de sua carreira. E sua mistura de materiais vistos como eruditos nesse caldo popular é uma das mais inconfundíveis assinaturas desse diretor tão pessoal e tão pouco egóico. Logo no começo do filme, ouvimos um sanfoneiro tocar ao vivo na rádio a Quinta sinfonia de Beethoven, ao vivo, abaixo de vários cartazes de outros artistas populares. O livro de Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, é filmado em close, sobre uma bunda de mulher nua, e precede a primeira cena de sexo do filme, em uma deliberada carta de intenções: um cinema desidealizado, mas cheio de ideias; amoral, porém sentimental, materialista e intensamente lírico.
- Nesse sentido, grande parte da contribuição desse cinema ao ambiente de cinema atual pode ser uma sugestão na pobre e moralizada discussão que hoje temos sobre estereotipia dos personagens. A sofisticação da “dupla função” opera num filme como O paraíso proibido, uma forma de riqueza dramática dentro dos tipos esperados: o homem em crise de meia-idade, a virgem filha do patrão, a intelectual acadêmica urbana, a prostituta ambiciosa, o amigo traidor, nenhuma dessas figuras, afinal, dá o que nós esperamos delas. A serenidade desconcertante da encenação reitera essa forma de complexidade rasteira, sem a chateação das camadas sem fim. As pessoas desejam, se confundem, projetam, têm tesão e enxergam o mundo a partir de suas realidades materiais, diferentemente. E isso é o suficiente para uma agilidade dramática constante, sem tempos mortos, porém a pergunta é se os afetos estão mortos, pela hostilidade do mundo que se apresenta. O trabalho dentro dos tipos e a moldura sociológica não restringem em nada a urdidura de um cinema discretamente anárquico e imaginativo, que sabe jogar com regras e enxergar os espaços onde pode injetar sua poesia e loucura.
- O espaço da ascensão, do progresso, de uma mudança como um movimento de classe, está proibido. Porém, pelo filme, se sinaliza que o sentido da jornada não é conclusivo. Celso não termina melhor do que começa, e acaba tendo mais uma transa, porém nada culmina ali. A questão para o personagem, e para esse cinema, não é crescer, almejar um espaço maior, de dignidade, do cinema oficial, do patrão, reconhecido e laureado. O que se parece sugerir é que o espaço do pequeno, do barato, do mundano, dos encontros errantes, de uma inventividade ao nível do chão, é um espaço onde a margem para uma gama infinita de sentimentos e experiências, onde progresso e regresso deixam de ser uma questão, onde a jornada é afinal intensiva, e a variedade imprevisível da amplitude de suas frequências emocionais e plásticas é sua maior riqueza. E essa será para sempre a contribuição revolucionária, incalculável e democrática dos cinemas “vagabundos”, como esse aqui, que luminosamente a nós se apresenta.