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O surrealismo feminista de Germaine Dulac

06 de abril de 2022

A Sessão Cinética de abril acontece em 7/4 no IMS Paulista e em 21/4 no IMS Rio.

 

A história já é bastante conhecida. Essenciais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica, diretoras, montadoras e roteiristas tiveram suas memórias relegadas às notas de rodapé da história oficial do cinema. Como muitos historiadores já apontaram, as mulheres estiveram na área cinematográfica desde seu nascimento, ocupando cargos de liderança e áreas criativas.[1]

Será somente por volta do final da década de 1920, quando os grandes estúdios começam a lidar com enormes somas de dinheiro dos patrocinadores e quando surge a divisão de trabalho do studio system, que homens escanteiam mulheres experientes para fora do jogo competitivo do show business. Por muitos anos deixadas de fora das retrospectivas, a obra de diversas cineastas do início do século passado está sendo finalmente trazida de volta à luz, em particular das cineastas do cinema silencioso, como Alice Guy-Blaché (1873 -1968), Lois Weber (1879 -1939), Dorothy Arzner (1897-1979) e Germaine Dulac (1882-1942)

A lista é ainda maior quando consideramos as mulheres que se aventuraram pela seara do cinema experimental. Cito apenas as mais conhecidas: Maya Deren, Rose Lowder, Abigail Child, Marie Menken, Shirley Clarke, Peggy Ahwesh, Mara Mattuschka, Lisl Ponger, Valie Export, Barbara Hammer, Chantal Akerman, Marguerite Duras e Trinh T. Minh-ha. As mulheres lutaram nas trincheiras do cinema de vanguarda desde os primórdios, e até hoje exploram o que há de mais radical na linguagem cinematográfica. E uma das pioneiras a desbravar esse terreno minado foi justamente a francesa Germaine Dulac, uma das primeiras cineastas feministas, lésbica e sufragista, cujos filmes serão exibidos na sessão Cinética de abril no IMS.

A concha e o clérigo (1928)

Por muitos anos, acreditou-se que o filme espanhol Um cão andaluz (Un Chien Andalou, 1929), de autoria de Luis Buñuel e Salvador Dalí, tivesse sido o primeiro filme surrealista da história. Hoje sabemos que, na verdade, esse mérito é da francesa Dulac, com o curta A concha e o clérigo (La Coquille et le clergyman, 1928), baseado no roteiro de Antonin Artaud. Um reconhecimento que foi obliterado de maneira proposital – e diga-se de passagem bastante violenta – na época de seu lançamento, em 9 de fevereiro de 1928. Artaud, apesar de ter apoiado vivamente a direção de Dulac de seu roteiro antes das filmagens, se desentendeu com a diretora. Contrariado por não ter tido participação mais ativa no filme e pelo tratamento feminino” que Dulac deu a seu texto, Antonin Artaud se juntou com o poeta surrealista Robert Desnos e outros amigos para vaiar o filme em sua estreia. O grupo tentou interromper a sessão, xingando a diretora aos gritos de “vache!” (vaca, em português) e foram sumariamente expulsos da sala. Entretanto, mesmo o fleumático e visceral dramaturgo viria a admitir posteriormente – após seu rompimento com os surrealistas – em carta ao amigo Jean Paulhan em 1932 que o filme de Dulac “inspirou diretamente os outros filmes, todos eles pertencem à mesma veia espiritual. Ele foi o primeiro de seu tipo e um filme historicamente importante [...] Temos que reconhecer o parentesco de todos esses filmes e dizer que todos eles vêm de A concha e o clérigo.”

Filmado um ano antes de Um cão andaluz e no mesmo ano de L´Étoile de mer, de Man Ray, o filme de Dulac reúne em si uma série de características que permitem que o coloquemos na vaga surrealista de Breton, distinta dos filmes de vanguarda anteriores (Le Retour à la raison, Emak-Bakia, Anémic cinéma, Ballet mécanique e Entr'acte são considerados sobretudo filmes dadaístas). Os surrealistas, como o nome do movimento já demonstra, defendiam que suas obras representavam não uma negação do real ou uma fuga alienante para um mundo idílico, mas sim uma realidade “superior” ou “suprarreal”', mais fiel à dimensão psicológica humana do que o realismo burguês, calcado na verossimilhança.

O filme de Dulac começa com os seguintes dizeres: “Não um sonho, mas o próprio mundo das imagens conduzindo a mente onde ela jamais teria consentido em ir, o mecanismo está ao alcance de todos”. Semelhante proposição está nos escritos de Artaud para a concepção do filme: “[O filme] Não conta uma história, mas desenvolve uma série de estados de espírito que são derivados um do outro, assim como um pensamento é derivado de outro sem que esse pensamento reproduza a sequência razoável de eventos”. O filme se apresenta portanto como uma deambulação do pensamento, como as associações livres estudadas por Sigmund Freud – nas quais os surrealistas tanto se inspiraram – e que orientavam as práticas e jogos poéticos surrealistas.[2]

Mas vamos propriamente ao filme. Iniciamos nossa jornada surreal adentrando um recinto escuro, uma espécie de porão. Atravessamos o umbral entre a vigília e o sono, como se estivéssemos adentrando o inconsciente. Nesse território limiar, vemos um homem (Alex Allin) trabalhando em uma mesa. Percebemos pelas vestimentas que se trata do protagonista que aparece no título do filme: o clérigo. O padre, circunspecto, está concentrado em uma tarefa repetitiva. Ele enche vidros de tubos de ensaio com um líquido escuro para em seguida imediatamente descartá-los no chão. Para tal, o homem se utiliza de um estranho instrumento: uma concha de proporções gigantescas.

Aqui, Dulac já joga suas cartas na mesa, demonstrando a premissa de sua encenação, denunciando o seu jogo de cena, como uma pequena maquete em mise en abyme. A diretora parece nos dizer: estamos diante de um experimento! Veja o nosso laboratório criativo de jogos com imagem. Como de fato veremos ao longo da narrativa, o rol de experimentações é bastante vasto: vemos desde o uso do stop motion até a câmera lenta, as duplas e triplas exposições, fotocolagens, máscaras, o anamorfismo, espelhamentos múltiplos, assim como o uso de câmeras emancipadas dos tripés, correndo livres pelas ruas da cidade (muito antes das câmeras da nouvelle vague francesa).

Os tubos de ensaio quebrados que se avolumam aos pés do personagem mostram o gesto profanador que subverte o lugar do laboratório – sítio originalmente reservado à limpeza e ordem. Estamos agora em um ateliê da entropia e do caos. O gesto é contrário ao positivismo científico, ou em outras palavras do Rechenhaftigkeit: o espírito do cálculo que, segundo Michael Löwy, os surrealistas, com “seu punhal aguçado”, foram capazes de cortar “os fios da aritmética” dessa teia de aranha racional.

As primeiras cenas permitem diversas associações livres bastante imediatas. A forma da concha nos remete ao órgão reprodutivo feminino: lembra uma vulva ou um útero. Pode também representar os fluxos de pensamento jorrando do crânio do homem? Ou talvez os líquidos que ele manuseia cuidadosamente possam ser seus fluidos eróticos mal direcionados? A sexualidade permeia todo o filme, mas não se trata de uma sexualidade libertária, e sim amaldiçoada. Nele, a libido amordaçada está em estado de convulsão agonizante. Vemos o retrato de um homem sufocado pela castração da moral religiosa. Já o segundo personagem, o general (Lucien Bataille), surge como um misto de força animal viril e conservadora. O militar encarna a figura do castrador, que surge na cena ameaçando com seu sabre fálico o clérigo, que, por sua vez, qual uma criança, se encolhe diante da figura de autoridade paternal.

É a mulher (Génica Athanasiou) do general que figurará como o espectro do desejo do padre. Como também observou Freud em seu livro A interpretação dos sonhos (1900), muitas vezes o mecanismo onírico opera por uma lógica peculiar, como nas figuras de linguagem, ora por condensação, ora por deslocamento, de duas ou mais ideias ou imagens. Algo semelhante ocorre no filme, quando o clérigo substitui o lugar do general como marido ou quando o militar troca de lugar com o padre e escuta os pecados da mulher no confessionário. A violência do desejo, que o faz querer entrar em fusão ou matar seu rival (como no mais óbvio complexo de Édipo), aproxima o erotismo da morte e do sagrado, temas tabus prediletos dos surrealistas, em particular de Georges Bataille.

 

Cenas dos filmes A concha e o clérigo e Um convite à viagem

 

Outro dado curioso é a "robotização" das personagens, que às vezes agem e atuam como manequins. O padre realiza sua missão no laboratório de forma automática e irrefletida, como se movido por uma força mecânica involuntária. Quando persegue a mulher, corre como um boneco autômato animado. Como se sabe, os surrealistas eram fascinados pela experiência “estranho-familiar” (Unheimlich, em alemão), o sentimento que atinge o sujeito quando se percebe diante de um objeto inanimado que poderia ser, de alguma forma, dotado de vida, ou vice-versa.

Dulac e Artaud, apesar do estranhamento em vida, não deixam de concordar em algumas premissas teóricas. Cotejando suas anotações pessoais e entrevistas, é possível notar que ambos concordam na proposição de uma nova arte que teria paralelos com a música, sendo “compreendida” não intelectualmente, mas sim através de sentidos outros. Não por meio do sentido lógico, da primazia da palavra ou da narrativa linear, mas sim da sensualidade da matéria. Assim como Artaud buscava o verdadeiro teatro “original” primitivo, baseado no duplo e nas experiências físicas convulsivas com o corpo, o cinema de Dulac também buscava – através de uma “pureza” original do meio cinematográfico – experiências sensoriais com o corpo das imagens.

 

Um convite à viagem (1927)

A importância do ritmo e da música estão presentes em muitas obras de Germaine Dulac. Segundo a diretora, “o cinema está sujeito visualmente à disciplina do ritmo da mesma forma que a música. Um tema expresso em imagens só pode ter impacto se for elaborado de acordo com as mais rígidas leis de harmonia.” É curioso lembrarmos que no seu renomado A sorridente madame Beudet (La Souriante madame Beudet, 1923), considerado o primeiro filme feminista da história, a narrativa é pautada pelo badalar do relógio, e a protagonista é uma pianista que toca Claude Debussy. A tentativa de traduzir os ritmos, as harmonias e a atmosfera da música clássica está também nos filmes experimentais Disque 957 (1928), baseado em um prelúdio de Chopin, e Étude cinégraphique sur une arabesque (1928). Uma tentativa semelhante de tradução ou transliteração de uma arte em outra ocorre em Um convite à viagem (1927), baseado no poema homônimo de Charles Baudelaire e um dos filmes mais musicais da diretora.

Um convite à viagem foi rodado no mesmo ano de A concha e o clérigo, mas se tratava de um projeto com uma narrativa mais convencional e voltada para um público mais amplo. O que demonstra que Dulac não via contradição entre o universo do experimental e do cinema comercial, ao contrário, acreditava que podiam se complementar. Nesse filme, o poema original de Baudelaire se converte em um espaço físico: um bar na cidade de Paris, onde, como no poema, tudo é “luxo, beleza e langor”. Agora, entretanto, o eu lírico masculino, que antes conclamava “a doce irmã” para, em uma viagem, “amar a valer, amar e morrer”, se converte em uma mulher (Emma Gynt). Não é mais o homem boêmio, mas sim uma mulher, enfastiada pela vida doméstica burguesa e pela falta de interesse do marido, que busca uma aventura romântica. A protagonista então se arrisca em um bar de marinheiros, à procura de uma possível fagulha para se sentir desejada e viva novamente. Entretanto, a ousadia de viver um romance fora das convenções – prática exaltada pelos poetas masculinos – será punida de maneira cruel quando os papéis de gênero se invertem.

A cena da falsa escotilha é especialmente marcante, como uma forma de comentário, ou uma moldura dentro da moldura. Ao olhar para fora, a mulher vê um beco triste repleto de lixo, que ela ignora e prefere continuar a sonhar com o mar. O seu imaginário vai tomando conta da narrativa como um filme paralelo, ou um filme dentro do filme. Ela se vê em uma viagem pitoresca, navegando por mares desconhecidos com seu amante. Esse recurso puramente visual (há pouquíssimas cartelas de intertítulos) nos faz perceber que a personagem não está avaliando bem o que tem à sua frente: em vez de um elegante pretendente que irá libertá-la de suas amarras, na verdade se trata de um homem que irá abandoná-la em um beco sujo e sem saída.

Para Breton, fundador do surrealismo, a mulher encarna ela mesma o éthos surrealista, devido à sua intuição, aos dons divinatórios míticos e à sensibilidade aflorada, que, no senso comum, são características associadas ao universo feminino. Ainda dentro de uma lógica patriarcal que essencializa o comportamento de gênero, o surrealismo buscou, por meio do “amor louco” e da restituição da mulher como força disruptiva, caótica e “irracional”, dar um golpe de misericórdia na logos racionalista da civilização ocidental. No entanto, em Germaine Dulac, as mulheres não estão mais no papel de objeto de desejo ou da “musa única” (como Breton se referia às mulheres), mas sim como protagonistas, com suas subjetividades colocadas agora em primeiro plano.

Como feminista, Dulac demonstrou em seus filmes o que Virginia Woolf já alertava em seu livro Um teto todo seu, publicado em 1929: a liberdade não é para todos. São precisas certas condições materiais para que mulheres se permitam alçar voos criativos. Para que a tentativa romântica-revolucionária dos surrealistas de reencantamento do mundo fosse possível, era portanto preciso que também as mulheres tivessem direito à luta pela liberdade sine qua non do espírito. Germaine Dulac foi uma das pioneiras a dar asas para a imaginação feminina, que se viram finalmente representadas nas telas. Em seus filmes, o cinema alcançou seu potencial revolucionário, seja na estética, seja na política – duas irmãs que não raro andam de mãos dadas na história.

 

[1] Sabemos hoje quanto o cinema soviético e as teorias de montagem de Eisenstein são herdeiros da contribuição da mentora Esfir Shub, e como o cinema-punho de Dziga Vertov não seria o mesmo sem a colaboração de sua companheira Elisaveta Svilova, montadora de grande parte de seus filmes. No Brasil, também não foi diferente. Temos os casos de Cléo de Verberena, de Carmen Santos e de Gilda Abreu, empresárias inovadoras e donas de seus próprios estúdios.

 

[2] Os surrealistas criaram alguns métodos ou jogos poéticos para liberar o inconsciente das amarras do ego. São eles: o cadavre exquis, os objets trouvés, o chiste, as collages ou assemblages – através da justaposição arbitrária de imagens encontradas ao acaso. Os encontros fortuitos com objetos ou pessoas no cotidiano invocariam um tipo de percepção “espantosa" da vida, propiciando coincidências "assombrosas" que fariam o sujeito experimentar, enfim, um "reencantamento" com o mundo.

 

Referências

ARTAUD, Antonin. Antonin Artaud 1896-1948: Selected Writings. Edição e introdução de Susan SontagNova York: Farrar, Straus and Giroux, 1976.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Edição bilíngue. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BORIE, Monique, ROUGEMONT, Martine de e CHERER, Jacques (org.). Estética teatral – Textos de Platão a Brecht. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018.

DULAC, Germaine. Writings on Cinema (1919-1937). Organização e apresentação de Prosper Hillairet, prefácio de Tami M. Williams. Tradução para o inglês de Scott Hammen. Coleção Classiques de l’Avant-Garde. Paris: Expérimental, 2018.

HOLANDA, Karla (org.). Mulheres de cinema. Rio de Janeiro: Numa, 2019.

LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Tradução de Eliana Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2018.