Não são poucos os críticos (entre eles me incluo) que consideram Ordet – a palavra (1955), do dinamarquês Carl Dreyer, um dos filmes mais belos de todo o cinema.
É essa obra-prima, em cópia restaurada, que os cinéfilos de São Paulo e do Rio de Janeiro terão oportunidade de ver ou rever nas próximas semanas, dentro da Sessão Mutual Films nos cinemas do IMS, tendo como contraponto e complemento outro filme extraordinário, o documentário A busca do lucro e o sussurro do vento (2007), de John Gianvito, inédito no Brasil. Mas atenção: são poucas as sessões (duas em cada cidade), algumas delas com debates incluídos.
Fé e amor
Premiado com o Leão de Ouro do festival de Veneza, Ordet é talvez o ponto mais alto de uma filmografia constituída de uma obra-prima a cada década: A paixão de Joana d’Arc (1928), O vampiro (1932), Dias de ira (1943), Ordet (1955) e Gertrud (1964). Como todo o cinema de Dreyer, ele é perpassado pela questão da fé e de sua relação com o amor, em seu sentido mais abrangente: amor carnal, amor à humanidade, amor a Deus.
Aqui, trata-se do drama (baseado numa peça teatral de Kaj Munk) de uma família da área rural da Jutlândia, nas primeiras décadas do século 20. O patriarca Morten Borgen (Henrik Malberg), abastado fazendeiro viúvo, adepto de um cristianismo que celebra a vida e a natureza, vê seus três filhos seguirem diferentes caminhos em face da religião.
Mikkel (Emil Hass Christensen), cuja mulher, Inger (Birgitte Federspiel) está grávida, perdeu a fé, tornou-se agnóstico; Johannes (Preben Ledorff Rye), ao contrário, é tão fervoroso que acredita ser uma reencarnação de Cristo; e o caçula Anders (Cay Kristiansen) está apaixonado pela filha do alfaiate (Ejner Federspiel) que é líder de uma seita cristã rival e que não permite o namoro.
O modo como Dreyer trabalha cinematograficamente esse jogo de perspectivas diante do mundo concreto e do sagrado (ou do mistério, se se preferir), e sobretudo o contraste entre o cristianismo luminoso de Morten Borgen e o cristianismo sombrio e severo do alfaiate, é de um refinamento que só pode ser qualificado de sublime.
Loucura e iluminação
Diferentemente dos fortes contrastes entre luz e trevas do expressionismo alemão, Dreyer é famoso pela intensidade de seus brancos e pelos infinitos matizes de cinza que o separam do negro profundo. Talvez isso tenha a ver com sua rejeição moral do maniqueísmo, do fanatismo e da intolerância, talvez também com uma postura religiosa que busca o transcendente no imanente, o invisível no visível, ou, dito de outra maneira, a manifestação da divindade na inesgotável riqueza do mundo concreto.
É célebre o cuidado do diretor com a composição do quadro e com os deslocamentos suaves de câmera (que ele chamava de “grandes planos fluentes”), que nunca desequilibram abruptamente o enquadramento, a não ser quando há uma necessidade dramática para isso.
Se são capazes de produzir momentos de insuperável beleza, esses procedimentos nunca têm um intuito meramente estético, estão sempre a serviço do drama e de seu sentido humano. Em Ordet, especificamente, trata-se de levar a recorrente relação entre fé e amor a seu ponto crítico: a possibilidade do milagre. E mais não se pode dizer, sob o risco de estragar a experiência de quem ainda não viu o filme.
Excepcional diretor de atores, Dreyer extrai aqui uma atuação fabulosa de Preben Ledorff Rye, que (assim como a Maria Falconetti de Joana d’Arc) transcende o registro do realismo psicológico no papel de Johannes, compondo uma figura entre o louco e o iluminado.
Num momento crucial da história, a menina Maren (Ann Elisabeth Groth), filha de Mikkel, segura a mão do tio Johannes, ao mesmo tempo confiando em sua palavra divina e mantendo-o preso ao mundo concreto do qual ele parece prestes a se descolar. O amor puro da criança, parece nos dizer Dreyer, é a ponte entre a divindade e os homens. Se isso é verdade do ponto de vista científico ou teológico, não importa: é verdade no cinema de Carl Theodor Dreyer.
A busca do lucro...
A conexão entre Ordet e A busca do lucro e o sussurro do vento, seu par na Sessão Mutual Films, não é nada óbvia à primeira vista. O documentário de John Gianvito é uma história social dos Estados Unidos narrada de modo surpreendente e original: por lápides tumulares e marcos históricos em referência a homens e mulheres que lutaram por diferentes espécies de emancipação: territorial, religiosa, social, racial e de gênero.
O título evidencia algo que a própria organização das imagens já deixa claro: a visada é política, o que se exalta é a luta contra a opressão ditada pelo interesse material. Mas a segunda parte da frase (“o sussurro do vento”) chama a atenção para o atemporal, para a vida que flui ao sabor dos movimentos da natureza. Gianvitto define seu filme como tentativa de poema visual inspirada no livro de Howard Zinn A People’s History of the United States, que teve mais de um milhão de exemplares vendidos desde sua publicação em 1980.
De locais de massacres de indígenas e de batalhas pela independência a sepulturas coletivas de operários mortos pela repressão policial, passando por túmulos de libertários célebres (Thoreau, Emma Goldman, Malcolm X etc.), esses inúmeros signos de morte filmados em silêncio (só se ouvem os sons da natureza ou, mais raramente, o murmúrio da cidade) acabam paradoxalmente por configurar uma celebração da vida, ou antes, da memória dos que se bateram pela vida. E “celebração da vida” talvez seja o nexo oculto entre este documentário sui generis e a obra-prima de Dreyer.