Othelo, o grande e Black Rio! Black power! estão em cartaz no cinemas do IMS Poços e IMS Paulista em setembro.
Chegam aos cinemas ao mesmo tempo dois documentários notáveis que, embora muito diferentes entre si, são complementares no estudo e na celebração da cultura negra no Brasil moderno, com todos os seus percalços e suas maravilhas. Estou falando de Othelo, o grande, de Lucas H. Rossi, e Black Rio! Black power!, de Emílio Domingos.
O primeiro, como sugere seu título, retrata o ator, cantor, dançarino e compositor Sebastião Bernardes de Souza Prata, mais conhecido como Grande Otelo, um dos maiores artistas que este país já teve. Com base em entrevistas concedidas pelo próprio Otelo, além de cenas de alguns de seus filmes mais marcantes, o documentário traça a biografia do ator ao mesmo tempo em que desvela sua importância seminal em todas as fases do cinema brasileiro a partir dos anos 1930.
Formado no teatro de revista, Otelo foi protagonista na chanchada, no pré-cinema novo (Rio zona norte, O assalto ao trem pagador), no pós-cinema novo (Macunaíma, Os herdeiros, O homem do pau-brasil), no cinema dito marginal (O rei do baralho, Nem tudo é verdade), no cinema de gênero (Lúcio Flávio) etc. Talento, carisma e energia nunca lhe faltaram. Sempre que parecia ter atingido a plenitude num determinado registro, ele surpreendia mostrando uma nova faceta, novos recursos.
Chanchada e cinema novo
Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), em especial, foi um vertiginoso ponto de inflexão, talvez a performance mais espetacular e corajosa de um ator já então ultraconsagrado. A escritora Noemi Jaffe brincou certa vez que Mário de Andrade escreveu seu livro em 1928 só para que Grande Otelo pudesse encarnar o herói quatro décadas depois.
O próprio ator destaca, no documentário a importância de Macunaíma por fazer uma conexão entre o cinema novo e a chanchada, até então menosprezada pelo movimento. A grandeza de Otelo transcendia escolas, estilos e panelas, estendia pontes entre o sofisticado e o popular. Divertia o espectador mais humilde e fascinava criadores do porte de Orson Welles e Werner Herzog.
À sombra dessa trajetória de êxitos, a vida do artista foi repleta de drama e sofrimento. Além do racismo estrutural que dificultou sua carreira e machucou sua alma, Otelo enfrentou acontecimentos trágicos em sua vida pessoal. O maior deles: sua primeira mulher matou o filho de seis anos do casal e se suicidou em seguida. O documentário tem a delicadeza e a sensibilidade de mencionar a tragédia sem enfatizá-la nem fazer sensacionalismo. Também o alcoolismo que infelicitou o ator é abordado com discrição.
A voz do artista
O grande mérito de Othelo, o grande é ser guiado pela voz do próprio retratado, bem como por sua arte em cena. Imagens de arquivo da vida no Rio de Janeiro em cada época abordada ajudam a soldar as partes e criar a ambiência dessa biografia singular, num trabalho formidável de montagem (de Willem Dias).
A primeira imagem do filme é significativa. Otelo já maduro, de shorts, encolhido no sofá, com o olhar meio perdido. A câmera se aproxima lentamente até fechar em seu rosto, que ganha dramaticidade ao tomar toda a tela. É, de certo modo, a expressão visual da proposta central do filme: como aquele homem negro franzino, frágil, se torna um gigante na tela do cinema. E o último movimento do filme inverte a mesma imagem, partindo do close para o plano mais aberto, o homenzinho negro encolhido no sofá. O homem e o artista, num retrato admirável.
Juventude negra
Black Rio! Black power! resgata com vigor e sensibilidade os bailes de black music surgidos nos anos 1970 em bairros das zonas norte e oeste do Rio de Janeiro. O movimento, batizado de Black Rio, significou um capítulo essencial do processo de autoafirmação da juventude negra periférica, gerando não apenas bailes com até três mil pessoas, mas também programas de rádio, grupos de estudo do racismo e bandas (a mais famosa é justamente a Black Rio, que tocaria com Raul Seixas, Tim Maia, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Elza Soares, entre outros).
A estrutura do documentário é simples e eficaz, organizando-se em torno de depoimentos de veteranos participantes do movimento, que evocam sua formação e a repercussão que teve na época na vida dos jovens negros da periferia. Falam, por exemplo, o DJ e radialista Dom Filó, o vocalista Carlos Dafé e a dançarina Virgilaine Dutra, cofundadora da produtora de funk Furacão 2000.
Todos os depoimentos, ou quase, são gravados na quadra/salão do Grêmio Rocha Miranda, conhecido como “o templo do soul”. As lembranças suscitam as imagens de arquivo – fotos, filmes, reportagens televisivas, recortes de jornal –, num caleidoscópio vibrante – e dançante.
Além da importância dos bailes para que os rapazes e moças encontrassem seus iguais e assumissem como positivos os signos de sua negritude – o cabelo armado, as roupas coloridas, a dança acrobática e sensual, os saltos plataforma –, o filme destaca o atrito fomentado pela mídia entre a “música americana” e a tradição do samba.
Os depoentes dizem que nunca houve de verdade esse embate, e que vários deles frequentavam quadras de escolas de samba. Ocorre que a música negra norte-americana cultuada por eles – o soul de Ray Charles e Otis Redding, o funk de James Brown – assumiam uma dimensão de afirmação racial que o samba tinha deixado de lado, ao menos naquele momento. As escolas, conta um deles, estavam embranquecendo – tendência que parece se reverter hoje em algumas delas.
Festa e luta
A festa e a luta andavam juntas no movimento black, e aparentemente isso incomodava o establishment cultural e social da cidade. Vários dos entrevistados atribuem o declínio do Black Rio, a partir do final dos anos 1970, à imposição maciça da disco music por gravadoras e emissoras de TV. Um marco dessa virada teria sido a novela Dancing days (1978/79), da Rede Globo. Sai James Brown, entra John Travolta.
Mesmo de duração efêmera, o Black Rio deixou marcas profundas e fecundas na mentalidade, no comportamento e na cultura da juventude negra, não só carioca. O hip hop e o funk das décadas posteriores beberam dessa fonte, que influenciou de diversas maneiras artistas já estabelecidos, como Luiz Melodia e Jorge Benjor.
Particularmente bela é a sequência final do documentário, em que cada um dos entrevistados, hoje na faixa dos sessenta ou setenta, mostra que não esqueceu seus belos passos de dança, na mesma quadra do Grêmio onde brilhou na juventude. Mentes lúcidas em corpos livres. A luta e a festa.