“A história é um pesadelo do qual estou tentando acordar.” A célebre frase de Stephen Dedalus no Ulisses, de James Joyce, poderia ter sido dita por Pu Yi (1906-67), cuja saga quase inverossímil é narrada por Bernardo Bertolucci em O último imperador (1987). Com suas quase três horas de duração, o filme, ganhador de nove Oscars, está disponível no Belas Artes à la carte, numa cópia impecável.
Claro que o épico bertolucciano perde muito de sua suntuosidade plástica e sonora na tela pequena e no ambiente doméstico de exibição, mas a grandeza dessa trajetória humana singular permanece intacta.
Singularidade, aliás, talvez seja a palavra-chave para apreender esse filme. Bertolucci já havia realizado onze anos antes outra epopeia histórica do século 20, 1900 ou Novecento. Mas, se ali os protagonistas (um camponês e um latifundiário) eram símbolos de classes sociais e forças políticas, em O último imperador ocorre uma inversão: em vez de partir do geral (a sociedade de classes) para o particular, é o indivíduo, em sua trajetória única, que ilumina os grandes movimentos da história, ainda que deles seja mais uma vítima do que propriamente um agente.
Coroado imperador da China aos dois anos de idade, aos seis Pu Yi viu a república ser proclamada no país, quando então passou a viver confinado na Cidade Proibida, em Pequim, reinando sobre um império fictício, quase como uma criança que brinca de casinha ou forte apache – só que com amas, eunucos e serviçais de verdade.
Quando os japoneses invadiram a China, no início dos anos 1930, Pu Yi foi instalado como imperador-fantoche da Manchúria, sob controle japonês. Outro reino de faz-de-conta, portanto, encerrado bruscamente com a derrota japonesa na Segunda Guerra, em 1945. Capturado pelos soviéticos e posteriormente entregue ao novo governo comunista chinês, o ex-imperador ficou preso como traidor da pátria entre 1949 e 1959, quando passou a trabalhar como jardineiro num parque público de Pequim.
Com base nas memórias do próprio Pu Yi e de Sir Reginald Johnston, seu tutor britânico durante a adolescência, Bertolucci fez dessa biografia romanesca a jornada de uma transformação: de símbolo a ser humano, de imperador a cidadão.
Toda a exuberância plástica e riqueza de produção estão a serviço dessa ideia, ou melhor, da tensão entre a grande história e o indivíduo – carnal, pequeno, frágil, finito. A progressão cromática, perfeitamente controlada pela fotografia de Vittorio Storaro, conta toda uma história à parte. Da predominância dos amarelos e dourados calorosos, uterinos, da infância no palácio, passamos paulatinamente para o vermelho das paixões juvenis e para o cinzento da história adulta – que chega ao extremo na uniformização coletivista da China de Mao.
De Marx a Freud
Se Marx era a principal referência para ler 1900, aqui Freud toma seu lugar. A separação precoce da mãe biológica, o apego do pequeno Pu Yi ao seio da ama de leite mesmo depois de “desmamado”, a “perversidade polimorfa” manifestada em suas brincadeiras com os eunucos e em sua dominação tirânica sobre os serviçais, as relações erótico-lúdicas com as esposas, tudo isso coloca o sexo como vetor central dessa jornada. Toda uma análise à parte poderia ser feita dos lençóis e tecidos semitransparentes, em que corpos são tateados, vislumbrados, adivinhados na contraluz, sem uma clara definição de gênero.
Assumir seu papel de adulto – de governante, provedor, procriador – é o grande problema de Pu Yi, sua grande impotência e derrota. É só quando, na dureza da prisão maoísta, vê-se despojado de seu papel simbólico, que ele se humaniza – e ao mesmo tempo se “anonimiza”, vira um homem qualquer na multidão. De toda a sua trajetória pelo século conturbado, resta no final um grilo escondido embaixo do trono da Cidade Proibida, numa bela cena alegórica em que, pela primeira vez, o filme abandona abertamente o realismo predominante da abordagem e o Pu Yi velho se reencontra com o Pu Yi menino.
Muito mais se poderia dizer – e já se disse – sobre esse filme grandioso, mas destaco apenas duas observações. A primeira é que Bertolucci conseguiu aqui um equilíbrio entre as exigências de uma produção para o mercado internacional (fala-se inglês, por exemplo) e a manutenção da integridade autoral e de um razoável respeito à cultura retratada. Salvo engano, foi o primeiro filme ocidental rodado no interior da Cidade Proibida.
Os atores centrais, John Lone (Pu Yi adulto) e Joan Chen (a imperatriz Wang Jung), eram astros chineses então em ascensão no Ocidente, e o principal ator japonês do elenco, o músico Ryuichi Sakamoto (autor também da envolvente trilha musical), havia estrelado anos antes Furyo – Em nome da honra (1983), de Nagisa Oshima. A escolha do grande Peter O’Toole para o papel do tutor britânico do imperador serve como uma homenagem indireta a outro grande épico “orientalista”, Lawrence da Arábia (David Lean, 1962), do qual Bertolucci sempre foi admirador confesso.
O último comentário diz respeito à personagem da jovem imperatriz Wang Jung, ou Wang Rong, que fica à sombra do protagonista e cujo destino depois do final da guerra não aparece no filme. Casada aos 16 anos com o imperador, segundo consta ela nunca teve relações carnais com ele e acabou engravidada por um motorista. Sua filha foi morta logo depois de nascer, o que agravou seu vício no ópio.
Capturada por guerrilheiros comunistas chineses, Wang Rong acabou na prisão de Linjiang, onde era exibida como curiosidade aos visitantes. Morreu na prisão em 1946, aos 39 anos, subnutrida, com síndrome de abstinência de ópio. O cinema nos deve um bom filme em torno dessa personagem fascinante.