Um caráter inevitavelmente retrospectivo ganha força neste terceiro e último texto sobre os episódios da série Small Axe exibidos como parte da programação Histórias Ocupadas: Steve McQueen. Lançada pela rede pública de televisão britânica BBC One, a produção dirigida pelo premiado diretor e artista visual de ascendência caribenha foi considerada a melhor realização de 2020 pela Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles, e tem como penúltimo e quarto capítulo o longa-metragem Alex Wheatle.
O filme reitera a reconstituição histórica realista – com autoral abertura para planos longos – como principal escolha de McQueen para retratar, de forma atrativa e didática para a televisão, as vivências e resistências dos afro-caribenhos na segregacionista e racista cidade de Londres das décadas de 1960, 1970 e 1980. Além disso, torna mais evidentes linhas temáticas também presentes em capítulos anteriores e que, nestes parágrafos de fechamento, ganham melhor análise. São elas: a alienação como realidade e contradição entre membros da comunidade afro-caribenha do período; o reconhecimento e destaque do pensamento negro socialista presente nas Américas como influência absorvida pelos afro-caribenhos na Inglaterra; a evidenciação da arte negra engajada como posicionamento político potente no enfrentamento ao racismo naquele território e, consequentemente, como fator de ameaça a ser criminalizado pela polícia londrina retratada como onipresente e hostil (contra afrodescendentes) na série. E, por fim, a necessidade de rememoração das violências cometidas na História como forma de superá-las.
Alex Wheatle (Sheyi Cole), jovem protagonista-título do episódio, é preso porque provoca a polícia ao apostar no impacto estético-político do reggae e das letras que historicamente fizeram o gênero musical ser de resistência, assim eternizado por nomes como Bob Marley. A produção musical do cantor e compositor jamaicano inclusive inspira diretamente o título de Small Axe, retirado de uma música de 1970 reconhecida por sua gravação no álbum Burnin' (1973) do grupo jamaicano Bob Marley and The Wailers.
Tal impacto estético-político tem seu ápice na forma ousada como são filmadas e montadas as cenas do segundo episódio da série (Lovers Rock), no qual acompanhamos o preparo e o desenvolvimento de uma blues party. As festas caseiras que a comunidade jamaicana de Londres promovia na década de 1980 a partir da influência do sound system são retomadas em Alex Wheatle.
Remetendo à história que inspira o surgimento do estilo musical lovers rock (espécie de versão romântica do reggae), no filme, Alex decide promover festas acessíveis de sound system em que pudesse cantar músicas autorais derivadas do reggae. “Meu som vai ser chamado de crucial rocker”, anuncia o protagonista, em cenas anteriores à sua performance em uma blues party. Na festa, ele canta um desabafo após a realização de manifestações políticas feitas por afrodescentes no bairro em que vive: “Não podemos mais aguentar esse sofrimento / Então nós nos revoltamos no Brixton”.
Personagem real, o romancista britânico Alex Wheatle viveu a juventude no bairro Brixton e participou das manifestações que levaram 20 mil pessoas às ruas da região em 1981 – evento conhecido como Dia de Ação dos Povos Negros –, após 13 jovens negros, com idades entre 14 e 22 anos, morrerem em um incêndio com características de ataque racial – o chamado Massacre de New Cross – e pouco noticiado.
No longa-metragem, acompanhamos o protagonista contando a vivência desse período ao seu colega de cela Simeon (Robbie Gee), adepto do movimento rastafári. O contato entre os dois é regado por um aspecto inusitado: Simeon tem desinteria e necessita, a todo momento, usar a privada que fica exposta na lateral do quarto consequentemente infestado pelo mau odor. A situação escatológica parece se vincular ao tratamento violento e degradante recebido por esses homens na prisão: eles estão literalmente na merda. Algo espelhado também na cena em que, durante sua juventude em Brixton, Alex se esconde em uma lata de lixo para não ser capturado por policiais em meio aos protestos nas ruas do bairro, e, ao sair dali, fica perceptivelmente fedendo. A analogia é evidente: o racismo faz o povo negro ser tratado como lixo, ser relegado a esse lugar.
A mudança forçada de Alex para o Brixton na juventude deflagra uma verdadeira jornada de transformação do personagem. Ele percorre um caminho ao longo do episódio que o faz partir de um lugar de ingenuidade quanto à sua relação com a segregação e ao pertencimento racial na cidade, rumo a uma conscientização política que implica o resgate e reconhecimento de suas raízes africanas e afro-caribenhas. Algo parecido com o chacoalhão de realidade e necessidade de conscientização e posicionamento político-racial pelo qual também passam os protagonistas do primeiro e do terceiro episódios da série (Frank, de Mangrove, e Leroy, de Red, White & Blue, respectivamente).
Uma cena materializa a trajetória de mudança de Alex. Após fumar maconha com seu “treinador-amigo” Dennis (Jonathan Jules), o protagonista adentra uma loja repleta de vinis de reggae e de clientes negros apreciadores do gênero musical. Como que contaminado pelo popularmente conhecido efeito do fumo inalado na sequência anterior, um plano panorâmico sobre a loja se dá em câmera lenta ao ritmo do gênero jamaicano que, em meio ao plano, é mixado na banda sonora sob diferentes profundidades de volume. São manipulações de imagem, som e montagem que transcendem o que poderia ser um realismo comercial e televisivo limitado, garantindo inventividade a um produto audiovisual criado para uma disseminação massiva e didática em termos historiográficos.
Nova fase de transformação
De todos os episódios da série, Alex Wheatle é o único que se abre diretamente a uma linguagem mais documental. A certa altura, um narrador profere um texto em inglês com evidente sotaque caribenho – no filme, não falar um cristalino inglês britânico é motivo de orgulho para os afro-caribenhos e seus descendentes, um dos aprendizados de Alex. O texto remete à rima e ao ritmo poéticos das letras de reggae e é escutado em off enquanto vemos arquivos fotográficos das manifestações reais que aconteceram em Brixton. Arquivos que, dado o caráter realista das cenas de violência contra negros em diferentes episódios de Small Axe, parecem ter inspirado a reconstituição histórica da série e ser atualizados por ela.
Quando termina de contar sua história ao seu companheiro de cela, Alex é introduzido a uma nova e final fase de transformação. É quando Simon apresenta ao protagonista uma perspectiva que evidencia a pluralidade de pensamentos da comunidade afro-caribenha na Inglaterra dos anos 1980. “Já se fala o suficiente em ‘ismos’ e racismo [...]. Mas a principal coisa que você deve se preocupar neste país é o sistema de classe e o classismo”, defende o rasta. “E é por isso que continuo falando sobre educação [...]. Educação, Alex! Educação é a chave”, completa, enquanto recomenda ao futuramente reconhecido escritor o famoso livro Os jacobinos negros (1938), de Cyril Lionel Robert James, vulgo C. L. R. James, historiador, ensaísta e socialista negro de Trinidade e Tobago. A obra é grande referência para vertentes do pensamento negro no Ocidente que avaliam a função social da escravidão e das formas de opressão dos negros para a manutenção do atraso econômico de países colonizados, tendo como exemplo o caso do Haiti.
A perspectiva faz lembrar a influência anticapitalista na criação do BPM (British Black Panther Movement, movimento Pantera Negra Britânica), uma vez que a iniciativa foi inspirada no partido socialista Black Panther dos Estados Unidos. Apresentado no episódio Mangrove, o BPM tinha sede em Brixton entre o final de década de 1960 e o início da década de 1970. Teve seu auge justamente na deflagração do movimento The Mangrove Nine (Os nove do Mangrove), que consistiu em protestos em resposta às ofensivas racistas da polícia londrina ao restaurante Mangrove, pertencente ao afro-caribenho Frank Crichlow, natural de Trinidade e Tobago. O proprietário, os trabalhadores e os frequentadores do estabelecimento, também imigrantes, realizaram protestos que culminaram na prisão de nove manifestantes e em um memorável julgamento.
O último capítulo da série inicia onde Alex Wheatle termina. Se, no penúltimo dos cinco filmes, a educação e a leitura são apontadas como salvação ao influenciarem definitivamente a carreira de pensadores negros como o reconhecido romancista e dramaturgo britânico Alex Wheatle, em Education, capítulo que fecha a série, o racismo promove uma corrosão inclusive no sistema disciplinar educacional – para além daquelas feitas no ou intrínsecas ao sistema disciplinar de “segurança” do Estado, o militarismo policial.
O filme conta a história ficcional de Kingsley (Kenyah Sandy), um garoto negro que tem dificuldades de leitura e é encantado pelo espaço sideral. O jovem é direcionado, pela direção da escola regular onde estuda, a uma instituição de ensino “especial”, que é, na verdade, uma “escola para os educacionalmente subnormais”, ou seja, uma instituição voltada a crianças supostamente necessitadas de “escolas anormais” devido a dificuldades de aprendizado. Ao longo da trama, Agnes (Sharlene Whyte), a mãe do protagonista, descobre que seu filho foi vítima de uma manobra racista que enviesava avaliações de aprendizado de estudantes negros para direciona-los a escolas piores e, consequentemente, relegá-los a uma limitação de desenvolvimento intelectual.
O episódio apresenta como solução o acesso de Kingsley a uma escola de negros e para negros ancorada em uma pedagogia baseada na afrocentricidade – filosofia publicizada na década de 1980 em livros de autoria do teórico negro estadunidense Molefi Kete Asante – ou seja, na percepção das culturas africanas e dos afrodescendentes como centro de conhecimento da humanidade. Sendo assim, o capítulo pode ser entendido como um metadiscurso do caráter didático que a própria série carrega ao reconstruir histórias negras pouco disseminadas na Inglaterra como instrumento para a comunidade negra britânica contemporânea – mas não só ela – repensar, reposicionar e transformar o presente das relações raciais no país.
Tanto em Education como na proposta política de toda a série é evidente que o caminho para o encontro da educação libertária e emancipadora para os negros não é suave. As cenas de violência protagonizadas por policiais brancos contra negros ao longo dos episódios desafiam o olhar dos espectadores identificados com as corporeidades oprimidas na tela. São tipos de cenas que ganham ainda maior peso quando colocam, em Education, crianças afrodescendentes como vítimas, agora de educadores brancos racistas intolerantes às suas diversidades de aprendizagem e de personalidade – enquanto os mesmos educadores são totalmente compreensivos com a diversidade comportamental e cognitiva de crianças brancas.
A “educação de Small Axe” assume, então, que, frente ao histórico, sistêmico e estrutural racismo, o caminho de luta e conscientização para a vivência negra livre e plena não é fácil, mas é possível. É preciso percorre-lo. Uma jornada. Uma saga. Uma série. Uma história a ser constantemente resgatada, recontada, transmutada.