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Selva fria

28 de novembro de 2024

Marcelo Gomes diz que decidiu filmar o romance Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, justamente por considerá-lo “infilmável”. O resultado desse desafio é o longa-metragem Retrato de um certo Oriente, em cartaz nos cinemas.

A primeira providência foi a elaboração de um roteiro (em parceria com Maria Camargo e Gustavo Campos) que desbastasse a complexidade da narrativa original procurando não perder a sua essência. Um texto formado por várias vozes e pontos de vista, abarcando quase um século de acontecimentos, foi reduzido a um relato linear em terceira pessoa, por um narrador onipresente (a câmera), cobrindo apenas alguns meses ou anos.

Depuração estética

Uma operação semelhante de simplificação e depuração foi feita no plano visual: o preto e branco é uma espécie de síntese que permite algum controle sobre a exuberância do que é mostrado, em especial a selva amazônica – além de esconder eventuais sinais de anacronismo. Esta última preocupação explica também as poucas cenas ambientadas em Manaus (ao contrário do livro), que exigiriam um enorme esforço de reconstituição de época.

O cerne da história é o que fica no filme: no final dos anos 1940 dois irmãos libaneses, Emilie (Wafa'a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour), fogem da conturbação político-religiosa em seu país numa viagem de navio para o Brasil. Durante a longa travessia, a católica Emilie se apaixona por um comerciante muçulmano, Omar (Charbel Kamel), despertando a ira do irmão, em que se misturam o ciúme e o ódio religioso. Afinal, foram assaltantes muçulmanos que mataram seus pais.

A narrativa se concentrará, então, nesse triângulo dramático e sua adaptação a uma geografia e uma cultura desconhecidas e desafiadoras.

Celebração da mistura

A grande qualidade do filme, a meu ver, está na observação dos contrastes culturais e, mais que isso, na celebração da mistura e da troca entre experiências humanas inicialmente distantes. Esse, aliás, é um tema caro a Marcelo Gomes, conforme vimos em Cinema, aspirinas e urubus e Joaquim, entre outros.

A confluência de culturas é anunciada logo nos primeiros planos do filme: imagens e ruídos da floresta amazônica sob o som de uma música inequivocamente árabe. Depois, no porto de Beirute e na travessia atlântica, ouvimos em inúmeras línguas os mais diversos relatos biográficos de palestinos, franceses, poloneses, italianos, judeus, alemães, todos buscando um novo lugar para viver. O mundo é uma algaravia – palavra, aliás, de origem árabe.

Uma das cenas mais bonitas do filme é aquela em que, na “gaiola” que levará os recém-chegados de Belém a Manaus, uma moça indígena, Anastácia (Rosa Peixoto), ensina a Emilie como armar sua rede de dormir. No sorriso de Anastácia cabe o Brasil inteiro, ou pelo menos o que ele tem de melhor, de mais puro, amoroso e vital. É toda uma utopia de país expressa num par de gestos.

Contemplação e emoção

Dito isso, há que reconhecer que a extrema preocupação estética talvez acabe por abrandar a contundência dramática do filme. A precisão dos enquadramentos, o controle absoluto da luz na magnífica fotografia (de Pierre de Kerchove), o trabalho minucioso de som, tudo isso como que distrai a atenção do espectador, induzindo mais à contemplação do que à emoção.
Ocorre então um paradoxo: narra-se uma tragédia turbulenta, animada por paixões violentas, num ambiente telúrico por excelência, mas com uma certa frieza, uma certa assepsia, como se Marcelo Gomes tivesse pudor em chafurdar no drama humano de seus personagens – ao contrário do que fez Sérgio Machado em O rio do desejo, também inspirado na literatura de Milton Hatoum.

É uma opção estética (e ética) que merece todo respeito e admiração. Sem contar que a recepção de uma obra é sempre subjetiva: aquilo que não me emociona pode emocionar outros espectadores, talvez até a maioria.

Retrato de um certo Oriente acaba de ganhar os prêmios de melhor filme, roteiro e fotografia no festival de Huelva, na Espanha. Não é pouca coisa.