Sertânia, de Geraldo Sarno, em cartaz no 47º Festival Sesc Melhores Filmes, não é apenas “mais um” filme sobre o sertão nordestino e sua saga multissecular de beatos, cangaceiros, jagunços e retirantes que se matam uns aos outros para perpetuar o poder das oligarquias. Até que surja outra à altura, é a obra “definitiva” sobre esse universo, ao passar em revista sua história, sua mitologia e sua iconografia, e com isso oferecer não apenas um retrato vívido da região, mas uma leitura da formação histórico-social de todo o país.
Num breve preâmbulo, um homem com sua viola, à luz do luar, anuncia a história que se contará. É uma fórmula clássica, que bebe na fonte da literatura de cordel e na tradição dos cantadores de feira. Em seguida, vemos um homem ferido rastejando com grande esforço pela caatinga, acompanhado por uma câmera ao rés do chão. É a história desse homem, Antão (Vertin Moura), vulgo Jararaca, vulgo Gavião, que será narrada, de modo descontínuo e delirante.
Estado mental
O filme todo, aliás, pode ser visto como uma projeção do estado mental desse sertanejo moribundo, o que justifica não apenas os avanços e recuos no tempo como também a sobreposição de várias dimensões: a da memória, a da alucinação, a do mito. E a acidentada biografia de Antão ilumina eventos e situações cruciais da história do Nordeste e do país.
O fato primordial, tanto no percurso do personagem como na constituição do Brasil moderno, é o massacre de Canudos, em que, ao que parece, o pai de Antão foi morto. Nos alvores da república, o país nascia sob o signo da violência e da exclusão social. Antão, ainda criança, é levado a São Paulo junto com a mãe (Kecia Prado) por um oficial que participou do massacre, o major Solon (Lourinelson Valdmir). Ela trabalha de doméstica e ele cresce sob a égide do militar, que o alista na força pública para reprimir greves e movimentos operários.
Já está presente aí um tema caro ao veterano diretor Geraldo Sarno, a migração de nordestinos para o sudeste, à qual dedicou um documentário fundamental dos anos 1960, Viramundo. Fica nítida também a mirada política do diretor, um corte social que aproxima os sertanejos pobres de Canudos e os operários combativos do início do século 20 em São Paulo como estorvos ao projeto de modernização conservadora dos donos da república. Uns e outros oprimidos com a mesma truculência estatal e paraestatal.
Mas Antão volta ao sertão, onde se desenrolará todo o restante do filme. Sua trajetória, como jagunço do Capitão Jesuíno (Julio Adrião), “o encourado, maioral do sertão”, lançará luz sobre as complexas e sujas relações entre o cangaço, a Igreja, os latifundiários e comerciantes da região – com os sertanejos pobres sempre como vítimas preferenciais da violência e da fome.
Não é o caso de antecipar os numerosos episódios desse jorro narrativo de força ímpar. O importante é que, a par de uma leitura lúcida e coerente da violenta história social do sertão, Sertânia empreende uma revisão da mitologia sertaneja consagrada em sua cultura (já falamos do cordel e dos cantadores de feira) e em sua iconografia, que inclui o registro documental-etnográfico (os rostos, corpos, objetos e afazeres dos homens e mulheres do interior) e todo o repertório cinematográfico do chamado nordestern.
Mais que as remissões pontuais a clássicos como Vidas secas, Os fuzis e Deus e o diabo na terra do sol, cabe atentar para a fotografia excepcional (de Miguel Vassy) em preto e branco, em especial o uso radical e criativo da “luz estourada” – uma transgressão explorada pelo cinema novo do início dos anos 1960 –, que em certos momentos deriva para o alto-contraste e cria grafismos de grande beleza.
Sertão sem fronteiras
Junte-se a isso o recurso frequente a névoas e fumaças, bem como uma orquestração precisa dos ruídos e da música (quase toda do compositor baiano Lindembergue Cardoso) e o resultado é um universo sem fronteiras e sem referências, embora a materialidade da terra e da vegetação sertaneja estejam sempre presentes, até mesmo na representação do mundo além da morte. O sertão, afinal, está em toda parte, como dizia Guimarães Rosa.
É nesse mundo sem limites entre o real e o imaginário que se justifica uma menção “antirrealista” à pintura do pré-renascentista italiano Giotto, num plano fixo em que os membros de um coro de igreja, filmados de perfil, ostentam leques redondos à volta da cabeça, fazendo as vezes de auréolas de santos. Veja a cena aqui:
Do documento cru à epifania religiosa, tudo cabe no turbilhão criativo desse cineasta octogenário que filma com o vigor e a ousadia de um garoto.
Faltou dizer que alguns atores encarnam mais de um personagem. Por exemplo, Lourinelson Vladmir, além do major Solon, interpreta também os coronéis nordestinos Militão e Delmiro Gouveia (ao qual Sarno dedicou um longa-metragem de ficção em 1978). Julio Adrião é o Capitão Jesuíno e também o pai de Antão. Esse procedimento, mais do que um mero jogo metalinguístico, serve para adensar o sentido político da narrativa, ampliando suas possibilidades de leitura e instigando o espectador a fazer conexões entre os vários papéis sociais e psicológicos.
À parte isso, há dois momentos de intervenção metalinguística mais direta, em que são expostas as circunstâncias de filmagem, verdadeiros safanões “brechtianos” para lembrar que tudo é construção, invenção, faz de conta. Mas a vida real, dolorosa e inescapável, pulsa a cada plano.