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Amor e espuma

17 de abril de 2024

SOAP, de Tamar Guimarães, é a atração da Sessão Cinética de abril. O filme será tema de debate com Luiz Carlos Oliveira Jr. e os críticos da revista, Julia Noá e Juliano Gomes, em sessão especial na sala de cinema do IMS Paulista.

Cena de SOAP, de Tamar Guimarães

O início desta década foi marcado por uma certa experiência apocalíptica do tempo, na qual sentíamos que um certo mundo estava chegando ao fim. SOAP é um filme que segue o rastro das mudanças comportamentais dos últimos anos, oferecendo um retrato do que terá sido viver nesse breve período da história recente. Realizado originalmente para o circuito de arte, o filme adota um formato seriado de seis episódios e meio, que serão exibidos na Sessão Cinética de abril como um longa-metragem.

O projeto, idealizado pela artista Tamar Guimarães, é uma sátira em tom menor do momento político vivido no país nos últimos anos do ponto de vista de um grupo social particular, que se confunde em parte com o círculo das instituições culturais de prestígio que financiam e exibem o filme: artistas, intelectuais, ativistas e trabalhadores da cultura esquerdistas e cosmopolitas, filhos da classe média que sentiram a integridade do próprio mundo ameaçada com a ascensão da Nova Direita.

Um grupo de amigos, disperso entre o Brasil e a Alemanha durante o período de isolamento da pandemia, decide se organizar para intervir na guerra cultural em curso, produzindo uma telenovela de infiltração, dirigida para o público bolsonarista, com o objetivo de transformá-lo por dentro. O filme acompanha debates travados em salas do Zoom, grupos de WhatsApp e no interior de apartamentos confortáveis sobre o modo de realização desse projeto um pouco ridículo, que, suspeitamos, estava destinado desde o início a fracassar. A sucessão dos episódios permite delinear, contudo, a forma de vida de uma certa comunidade, no momento em que precisa negociar sua posição dentro de uma comunidade política mais ampla. O resultado é um inventário das sensibilidades de uma certa época, que ainda é a nossa.

SOAP documenta uma forma de ansiedade nascida de uma nova compreensão da nossa topografia social, quando acreditamos viver separados por bolhas. A metáfora da espuma, que o filme parece sugerir no título um pouco de brincadeira, oferece uma imagem do mundo plataformizado, cuja infraestrutura material serve de base para os jogos cênicos midiatizados do filme. SOAP documenta a experiência de viver (de se sentir vivendo) em uma bolha, observando cuidadosamente os modos de falar e sentir nos quais um grupo pensa sua posição em relação ao outro: a alterização radical (“o fascismo”), a autocrítica postiça (“nós também somos fascistas, depende do ângulo ou da perspectiva”, “a esquerda branca está morta”), as fantasias de infiltração (“pensa na novela entrando nas pessoas, nas pessoas que andam pela rua, que passam por você, não te olham, mas você vai estar dentro delas”) e de comunhão (“todo mundo junto numa espuma de carnaval, dançando, se vendo sem confronto, só existindo”).

O filme observa os debates travados entre os personagens de maneira bastante atenta aos jogos sociais que sustentam os seus discursos. O que se discute parece sofrer de uma perda de lastro no mundo, como se o filme sugerisse que nos encontramos em um estado geral de culturalização da política. As tomadas de posição se mostram antes de tudo como sinalizadores de pertença social, pelos quais os personagens negociam suas identidades. As discussões se revelam muito rapidamente como uma cena dirigida para si, em que cada um performa sua própria identidade individual, tomando posição em um jogo simbólico que gira em falso. O filme nos lembra que a crise política dos últimos anos tendeu, na verdade, a fortalecer nossas posturas políticas automáticas, como se evitássemos encarar a crise nos olhos.

O empreendimento do grupo termina por sugerir, contudo, uma compreensão do processo de subjetivação política que aponta para fora da closura dos jogos discursivos entre seus participantes, quando o filme confronta o discurso apostólico neopentecostal, mimetizado pela telenovela dentro do filme. Em certo momento, os personagens refletem sobre a possibilidade de uma dramaturgia capaz de conduzir o espectador para uma “revelação”, pela qual veriam a si mesmos radicalmente transformados, uma formulação que espelha, deliberadamente, a promessa cristã de renascimento. O tema do renascimento havia marcado presença no discurso de uma personagem pastora, que discursa para a câmera na telenovela. O que ela propunha a seus telespectadores era, justamente, uma experiência radical de despossessão da própria identidade, pela qual seria possível iniciar uma nova vida. “A novela ainda precisa funcionar, ela ainda precisa ser feita”, diz uma personagem no fim, em um tom discretamente messiânico, como se a novela fosse a cifra dessa comunidade por vir.

A cena mais forte do filme talvez seja a que vemos o historiador Dirk Moses ser interpelado por um manifestante, saído de um protesto da direita nacionalista e cristã alemã. O que testemunhamos agora é uma inversão entre quem se endereça e quem é endereçado no filme. Moses precisa lidar com a captura da sua imagem pelo olhar do outro, na qual ele não se reconhece. A sua grande preocupação, contudo, é interromper apressadamente toda forma de comunicação, salvaguardando sua identidade ameaçada.

A fala do manifestante é diferente dos discursos que vimos durante o filme, tão conscientes de como desejam ser escutados: a sua fala é acesa por um fogo da convicção que não tínhamos visto em lugar nenhum. Ela se dirige ao outro sem temor. A ansiedade de nos vermos endereçados por essa fala é a de constatar que o ônus da prova está sobre nós, que não demos ainda razão para o outro acreditar no que dizemos, que não há na nossa fala o amor de quem acredita no renascimento. A novela ainda tem que ser feita.