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Território ermo plantado na esquina do mundo

28 de dezembro de 2024

Inútil buscar os rastros da noite
nos livros de história.
Nossos rumos dormem antigos
sob a poeira da discórdia.
Paulo Colina1

 

Colagem (1968), de David Neves, filme-ensaio que orbita em torno de Luiza Maranhão e Antonio Pitanga, parte de um dispositivo cuja decodificação seria, a princípio, consideravelmente simples: a justaposição de blocos de Barravento (1962), de Glauber Rocha, e Ganga Zumba (1963), de Cacá Diegues com o que poderíamos caracterizar como uma espécie de ensaio-ficção protagonizado por Antonio Pitanga, no qual a dramatização de cenas que remetem à experiência cotidiana servem de veículo para a verbalização de uma série de asserções em torno de uma prática cinematográfica nova em sua relação com a realidade brasileira. Deste modo, Pitanga seria um correlato cênico do discurso ensaístico – de autoria do cineasta e crítico de cinema Maurício Gomes Leite – que se sobrepõe em off aos segmentos remontados de Barravento e Ganga Zumba. Colagem toma parte, portanto, dos esforços internos ao Cinema Novo de construir um novo discurso em torno do cinema brasileiro, em paralelo a um novo cinema, e que implicaria tentativas, em longa duração, de documentação e reflexão internas do próprio grupo cinemanovista, como Cinema Novo (1967), de Joaquim Pedro de Andrade, ou ainda o livro Revolução do Cinema Novo (1980), de Glauber Rocha.

No entanto, há inflexões importantes nesta espécie de discurso crítico em ato com o qual o Cinema Novo se volta sobre si mesmo: penso no paralelismo entre Colagem e o artigo “O cinema de assunto e autor negros no Brasil (1964)”2. O ensaio de Neves, dentre os vários esforços cinemanovistas de construção de um discurso crítico que situa sua própria novidade histórica, sublinha de modo singular o caráter central do “cinema de assunto negro” do qual Barravento e Ganga Zumba seriam representantes:

Pode-se ver que, culturalmente, a manifestação de um cinema negro quanto ao assunto foi até hoje episódica e só tem sido abordada como via de consequência. Digo foi porque, no panorama cinematográfico brasileiro, emergiram cinco filmes que serão, no método indutivo que proponho abordar aqui, as bases de uma modesta fenomenologia do cinema negro no Brasil. Os filmes são: Barravento, Ganga Zumba, Aruanda, Esse mundo é meu e Integração Racial.3

Há neste caso uma relação simultânea de tensão e complementaridade entre o ensaio de Neves e o off de Colagem, no qual se escuta (em narração de outro ator-emblema do Cinema Novo, Hugo Carvana) : “Barravento: Antônio Pitanga cria um novo rosto, o homem brasileiro, que encontra a mulher, Luiza Maranhão”4 . Neste trecho notável, cortes secos articulam a transição entre a chegada de Firmino-Pitanga ao vilarejo do Buraquinho, a aparição de Pitanga, personagem documental-fictício na fila de uma bilheteria de cinema e o encontro entre Cota-Luiza e Firmino-Pitanga. Nele, a transição entre o P&B e o colorido serve de marcador para a transição entre dois dos personagens interpretados por Pitanga: Firmino, em Barravento; e Pitanga, personagem de uma dramaturgia afeita ao documentário que assume de modo vicário, em Colagem, o papel de diretor em cena e porta-voz ideológico de um cinema identificado à realidade brasileira.

O efeito último da articulação entre esses três blocos – guiada pela sobreposição entre o off ensaístico e a continuidade da banda sonora, na qual o toque de capoeira do corte original de Barravento é substituído por um ponto de Exu Tiriri, no pioneiro registro folclorista do grupo Filhos de Nagô, sob a direção de Pai de Santo Felipe Neri da Conceição, realizada em 78 rpm em 1931 – provoca a identificação de Luiza e Pitanga com seus personagens (Cota e Firmino, respectivamente), doravante faces cinematográficas prototípicas do homem e da mulher brasileiros5. Resulta também na efetuação dessa mesma operação pela via do transe, no qual o sentimento coletivo expresso pelos atores – condição de possibilidade da própria operação cinematográfica, estrutura projetiva que o off vai localizar no registro fundante dos Lumière – é ainda presa do “misticismo trágico e fatalista” (como nomeado nos créditos de abertura de Barravento), objeto de um “cinema lúcido que denuncia o mito”.

***

Boi de Prata, de Augusto Ribeiro Jr., recoloca e prolonga as discussões do “novo cinema popular”6 para além dos já conhecidos casos de Amuleto de Ogum (1974), Tenda dos Milagres (1977) e Estrada da Vida (1980), todos de Nelson Pereira dos Santos. Para além do anedotário biográfico (Augusto Ribeiro Jr. havia integrado a equipe de Amuleto de Ogum; Iberê Cavalcanti, um dos produtores do Boi de Prata, havia sido produtor de Nelson e ele próprio realizador de filmes que gozam de familiaridade com o “novo cinema popular, tal como A Força de Xangô [1977]), Boi de Prata trafega por entre questões que vêm ao proscênio do debate cinematográfico brasileiro a partir do Amuleto de Ogum e da entrevista-manifesto de Nelson Pereira para Marcelo Beraba7. São elas: o deslizamento entre duas tipificações do popular, enquanto mediação cinematográfica de um conjunto de poéticas que é expresso nas formas culturais populares – e que não raro assumem a feição da incorporação de uma mise-en-scène oriunda de práticas coletivas afrodiaspóricas – e como mecanismo de comunicabilidade junto ao grande público; a ambiguidade com relação às expressões da indústria cultural, como forma e conteúdo, seja na tematização direta de seus produtos e veículos, seja na vizinhança com os protocolos do cinema de gênero e sua reconstrução efetuada pela nova Hollywood; e a desconfiança diante da onipresença dos signos de dominação imperialista, tanto econômica quanto cultural, que não raro reedita o ideal pecebista de um pacto com a burguesia industrial brasileira como resistência possível à permanência de nossa situação colonial8.

Boi de Prata orbita à sua maneira em meio a essa constelação de questões. Retoma de modo singular o cinema de temática sertaneja, em uma espécie de expressão tardia que guarda familiaridade com diversos revisionismos do western, desde o western-spaghetti até às retomadas do gênero no contexto do cinema popular brasileiro - que, não raro, tomam como plot o anedotário brutal em torno da disputa de terras no mundo rural brasileiro (penso especialmente em Chumbo Quente [1977], de Clery Cunha, protagonizado pela dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho)9. Ou ainda a paródia à contracultura e suas metamorfoses, retratada como signo colonial e expressão de classe, anátema de circulação ampla no cinema popular brasileiro (penso especialmente em Nos embalos de Ipanema [1978], de Antônio Calmon).

Neste contexto simultaneamente violento e feérico, a presença de Luiza Maranhão, há muito afastada das telas, parece figurar como um emblema das contradições sem síntese que permeiam Boi de Prata: figuração de um saber ancestral que é tanto signo de uma hibridação cultural fundante da pletora de povos em fricção nesta comunidade sertaneja imaginada, quanto marca dos fios rompidos, das memórias rasuradas de uma diáspora cujos efeitos se replicam sem cessar10.

***

Colagem, Boi de prata: trazer de volta ao proscênio a trajetória de Luiza Maranhão implica em sublinhar o papel de inúmeros atores e atrizes negros nas profunda modificações que atravessaram o cinema brasileiro a partir da década de 1950. Para além do debate em torno dos protagonismos, permanece viva a pergunta em torno da implicação da descoberta de novos corpos na emergência de uma nova concepção de mise-en-scène, fundada no bailado tenso entre o “jogo do corpo e inteligências”11 e a câmera na mão.

 

1 COLINA, Paulo. Rosa dos ventos. In: COLINA, Paulo. A noite não pede licença. São Paulo: Roswitha Kempf, 1984.

2 NEVES, David. O cinema de assunto e autor negros no Brasil. In: SIQUEIRA, Ana et al. (org.). FestCurtasBH: Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, 20., 2018. Belo Horizonte: Clovis Salgado, 2018. p.183-186. Ressalto ainda que a condição anfíbia de diretor-crítico de David Neves se manifesta em outros trabalhos, notadamente Mauro, Humberto (1975).

3 NEVES, David. O cinema de assunto e autor negros no Brasil. In: SIQUEIRA, Ana et al. (org.). FestCurtasBH: Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, 20., 2018. Belo Horizonte: Clovis Salgado, 2018. p.183-186.

4 Colagem. Minuto: 2:00.

5 Neves parece encontrar em Glauber algo que Ismail Xavier localiza em Rogério Sganzerla: “(...) uma filosofia do corte em movimento, um jogo tenso entre câmera e ator que fizesse ressaltar instantes especiais, momentos felizes de documentação do olhar e da fisionomia”, em XAVIER, Ismail. O grande artista e sua condição: a espiral barroca de Rogério. Ocupação Rogério Sganzerla. Radiografia. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/rogerio-sganzerla/radiografia/#o-grande-artista-e-sua-condicao-a-espiral-barroca-de-rogerio.

6 SANTOS, Nelson Pereira. A hora da virada. Entrevista concedida a Marcelo Beraba. O Globo, Rio de Janeiro, 29 jan. 1975 e SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. São Paulo: Nova Fronteira, 1995.

7 Reunida com o ensaio “O amuleto mudou tudo”, de Jean-Claude Bernardet, no libreto Manifesto por um cinema popular, e distribuído à imprensa junto ao release de Amuleto de Ogum.

8 Sobre o “novo cinema popular”, continuam incontornáveis AVELLAR, J.C. O cinema dilacerado. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985 e GALVÃO, Maria Rita; BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: Repercussões em caixa de eco ideológica (as idéias de ‘nacional’ e ‘popular’ no pensamento cinematográfico brasileiro). São Paulo: Brasiliense, 1983.

9 Sobre o western no Brasil, ver PEREIRA, Rodrigo da Silva. Western Feijoada – O faroeste no cinema brasileiro. Bauru: UNESP, 2002. Essas observações são também fruto de conversas com Samuel Marotta, curador da mostra A Porteira do Mundo: a música caipira no cinema brasileiro, ocorrida na Cinemateca Brasileira entre 31 de maio e 2 junho de 2024.

10 Ver GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: GONZALEZ, Lélia; RIOS, Flávia (org.); LIMA, Márcia (org.). Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 67-83.

11 ROSA, Allan. Pedagoginga – autonomia e mocambagem. São Paulo: Pólen, 2019, p. 54.