Titane, de Julia Ducournau, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e está disponível no Mubi, não é um filme para todos os gostos, e muito menos para todos os estômagos. É possível que afaste muitos espectadores logo nos primeiros quinze minutos. Os que resistirem (e não está proibido fechar os olhos em algumas cenas) serão recompensados com uma obra forte, original e, à sua maneira, bela.
No parágrafo anterior falei em olhos e em estômagos. Talvez não tenha sido casual. Titane é um filme que fala de corpos em relação com corpos, “corpos que violam e são violados”, para usar a expressão feliz da crítica e pesquisadora Ivana Bentes. Seu tema é fisiológico, seu método de exposição é brutal, sem anteparos intelectuais, portanto é natural que seus efeitos sejam sentidos fisicamente pelos espectadores.
Natureza e tecnologia
O que complica as coisas e torna o filme particularmente interessante é, desde o início, a mistura entre o orgânico e o mecânico, entre a natureza e a tecnologia, entre a carne e o metal. Nisso, Titane remete diretamente a certos filmes de David Cronenberg. Ainda na sequência dos créditos iniciais, a câmera perscruta as entranhas de uma máquina (um automóvel?) como se fosse um organismo vivo – mais ou menos como a microcâmera que explora o interior do corpo humano em Viagem fantástica (Richard Fleischer, 1966) ou em Viagem insólita (Joe Dante, 1987).
A primeira cena mostra um acidente automobilístico. Na estrada, a menina Alexia importuna tanto o pai (Bertrand Bonello) que este perde o controle do carro e bate. Resultado: ferida gravemente, a menina tem implantada uma placa de titânio no crânio.
Essa circunstância – o metal acoplado à carne – moldará a condição da protagonista como um ser singular, à margem, cuja trajetória, por sua vez, iluminará os desajustes e carências dos outros indivíduos com as quais se relacionará.
O primeiro fato crucial da vida da Alexia adulta (Agathe Rousselle) é sua cópula com um automóvel. Atenção: não num automóvel, mas com um automóvel, um Cadillac de exibição, pintado com as labaredas de um incêndio. Quem estiver esperando verossimilhança abandonará o filme nessa cena, aliás extraordinária. Quem continuar, saberá que o fogo será um elemento recorrente na narrativa.
A história de Alexia se cruza com outra, a de um menino desaparecido há dez anos e ainda procurado pelos pais, especialmente pelo pai, o chefe dos bombeiros Vincent (Vincent Landon). Inevitável cometer um spoiler aqui dizendo que Alexia tentará se encaixar a fórceps no papel do menino desaparecido.
Metamorfose ambulante
Reforça-se assim o destino de transmutações, ou de simbioses, da protagonista: mistura de carne e metal, de mulher e homem, de verdade e mentira. Uma figura andrógina e aparentemente perversa – tanto no sentido freudiano de perversão como no de perversidade mesmo. Mas o filme não a julga. À sua passagem, ninguém fica indiferente, nem os outros personagens, nem o espectador.
Com uma progressão narrativa implacável, feita de sequências que saltam sempre para ambientes e situações radicalmente distintas, sem o conforto de planos de ligação, sem explicações e sem música compassiva, Titane nos apresenta personagens imprevisíveis, impenetráveis, com os quais é impossível a identificação ou a projeção (mecanismos básicos do cinema clássico de entretenimento). Vem daí, mais do que da violência propriamente dita, a perturbação causada pelo filme.
O público em geral suporta bem a violência quando tem a segurança da clareza de intenções, da identificação com os bons, da moral edificante, da justiça apaziguadora. Em Titane ele não encontra nada disso, mas uma porção de pontas soltas, de fios desencapados, de pontos sem nó. O filme é da estirpe dos pesadelos necessários, como tantos de Roman Polanski, David Lynch, Lars von Trier e, claro, David Cronenberg.
Mas não é desprovido de moral ou de aspiração espiritual, como comprova a quase mística cena final, verdadeira redenção. Entre fluidos corporais e industriais, em meio ao choro e ranger de máquinas, emerge uma aposta profunda no humano, ainda que misturado com a tecnologia (ou contaminado por ela).
Fábulas paralelas
Para encerrar, uma coincidência notável: assim como a francesa Julia Ducournau, a pernambucana Renata Pinheiro também dirigiu recentemente um filme sobre a simbiose entre ser humano e automóvel, o ainda inédito Carro rei, premiado em Gramado no ano passado, em que há também uma trepada entre uma mulher e um carro. Embora sejam obras radicalmente distintas, o fato de duas diretoras realizarem ao mesmo tempo fantasias com um fundamento semelhante, sem que uma soubesse da outra, talvez queira dizer alguma coisa. Mas não sei o que é.
Monica Vitti
Beleza, elegância e mistério eram as marcas de Monica Vitti, grande atriz que morreu aos 90 anos na última quarta-feira, dia 2. Não atuava desde o início dos anos 1990 e é possível que as novas gerações não a conheçam. Nunca é tarde. Seja em obras-primas de Michelangelo Antonioni, seja em comédias de costumes de Monicelli, Scola, Salce, Fondato ou Steno, sua presença é sempre luminosa.
Uma caixa de DVDs da Versátil abarca a chamada “trilogia da incomunicabilidade” de Antonioni: A aventura, A noite e O eclipse. A aventura está disponível também na plataforma Belas Artes à la carte, e A noite está no Youtube, de graça e legendado em português. Outra memorável parceria de Monica com o diretor, O deserto vermelho, está disponível gratuitamente no Sesc digital.
O Youtube tem também outros filmes estrelados pela atriz, como O fantasma da liberdade, de Luis Buñuel, falado em francês com legendas em inglês; Ciúme à italiana, de Ettore Scola, falado em italiano com legendas em espanhol; e Modesty Blaise, de Joseph Losey, em inglês sem legendas. Uma atriz dessa grandeza vale o esforço.