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Altas mulheres

26 de dezembro de 2019

Para terminar um ano de forte presença feminina nas telas, nada mais apropriado que dois filmes com mulher no título, no corpo e na alma: o russo Uma mulher alta e o macedônio Deus é mulher e seu nome é Petúnia.

O primeiro, dirigido pelo jovem Kantemir Balagov, de 28 anos, está entre os dez títulos pré-selecionados para disputar o Oscar de filme estrangeiro. É um drama terrível sobre os estilhaços da Segunda Guerra Mundial na vida de gente comum, em especial das mulheres.

 

 

A mulher alta do título é Ilya (Viktoria Miroshnichenko), enfermeira de um hospital militar repleto de homens mutilados e traumatizados. Ela cuida do filho pequeno de uma amiga, Masha (Vasilisa Perelygina), que está no front como “mulher do exército”, uma espécie de prostituta oficial escalada para aliviar a tensão dos soldados.

O filme começa pouco antes de Masha voltar da linha de frente e se empregar como auxiliar no mesmo hospital. Acompanhamos então a relação entre as duas amigas e seus desdobramentos imprevisíveis. Não é o caso de revelar aqui esses desdobramentos. Basta dizer que eles acabam por iluminar as múltiplas facetas e nuances da condição feminina numa situação de brutalidade e penúria extremas.

 

Tradição russa

Mais importante que o enredo em si é a maneira como Balakov o desenvolve e expõe e que traz a marca da grande tradição cinematográfica russa, que vem de Eisenstein e passa por Tarkovski até chegar a Sokurov, entre tantos outros: um cinema de extrema densidade humana e rigor estético.

Aqui, os planos em geral são longos e elaborados, dando ao espectador tempo de entrar na cena e observar todos os seus detalhes. As falas e gestos são dotados de uma certa solenidade. A direção de arte evidencia o peso do tempo, o desgaste dos materiais; a fotografia privilegia os verdes e vermelhos foscos, os meios-tons, com um amarelo doentio pairando sobre tudo; o tratamento do som, que talvez se possa chamar de hiper-realista, capta e reverbera a atmosfera de insanidade que impregna todos os ambientes.

Já a primeira cena, em que vemos a protagonista num estado meio catatônico e ouvimos as vozes e sons ambientes amortecidos, levemente distorcidos, nos lança na esfera do trauma, tanto pessoal, daquela mulher alta, como coletivo. Imediatamente nos lembramos de Vá e veja (1985), de Elem Klímov, outro drama de guerra terrível, em que um garoto enviado ao front perde quase totalmente a audição em consequência de uma explosão. É como se Uma mulher alta fosse uma continuação do filme de Klímov.

 

Episódios atrozes

Ao longo das duas horas seguintes o espectador é confrontado com episódios atrozes, incluindo uma eutanásia improvisada e algumas das cenas de sexo mais estranhas e deprimentes que se possa imaginar. O inferno da guerra vai revelando detalhes cada vez mais sórdidos que vão muito além da violência direta, das mortes e ferimentos em batalha. É um mundo de fome, frio, humilhações e prostituições de toda ordem.

O paradoxo é o seguinte: como esse rosário de desgraças pode gerar beleza e elevação espiritual? Esse é o ofício (e o mistério) da grande arte: sublimar a dor humana sem estetizá-la ou escamoteá-la (como faz, por exemplo, a publicidade). Fazer com que aquele que entra em contato com a obra se sinta concernido, comungue com a condição de quem sofre. É o caso de um quadro como Guernica, de Picasso, ou de um filme como Não matarás, de Kieslowski, para ficar em dois exemplos bem distintos.

Guardadas as devidas proporções, é a esse tipo de arte que pertence Uma mulher alta. Para o espectador que só está interessado em se distrair pelo tempo que dura seu balde de pipoca, um filme como esse devia ter um letreiro na porta do cinema: “Deixai toda esperança, vós que entrais”.

 

Petúnia

O macedônio Deus é mulher e seu nome é Petúnia, da diretora Teona Strugar Mitevska, é um tanto menos exigente, mas não chega a ser condescendente com o espectador.

Numa cidadezinha provinciana da Macedônia, uma mulher de 32 anos, formada em história, ainda vive com os pais, pois nunca teve um emprego. É a Petúnia (Zorica Nusheva) do título. O filme começa justamente com Petúnia sendo tirada da cama pela mãe para ir a uma entrevista de emprego. Tudo se passa nesse único dia.

É um feriado santo em que uma procissão segue o sacerdote ortodoxo até o rio que corta a cidade. O padre joga uma pequena cruz nas águas geladas e os rapazes locais mergulham no rio para ver quem a pega. O vencedor fica durante um ano com a cruz, que supostamente lhe trará sorte.

Mas nesse dia quem salta inesperadamente na água e se apossa da cruz é Petúnia, o que bagunça toda a cerimônia, a tradição religiosa e os brios dos machos locais. A partir disso desenvolve-se um drama surreal com lances cômicos, mobilizando toda a comunidade: o padre, o delegado, a TV local e a horda de rapazes anabolizados e furiosos.

A narrativa é ágil e segura, sem conversa jogada fora, e se beneficia muito da presença carismática da atriz principal, uma bela mulher estigmatizada por seu excesso de peso. Acuada por todos os lados, seu olhar oscila entre o medo, a mágoa e as maquinações diabólicas. Em outro século, seria queimada como bruxa.

 

Heroína acidental

No centro de tudo, claro, o impacto desestabilizador que um único gesto feminino de independência pode causar numa cultura patriarcal estabelecida. Nesse aspecto, o filme acaba transcendendo o contexto da Macedônia interiorana e falando sobre muito do que estamos vivendo no mundo, em especial no Brasil: a reação furiosa das forças conservadoras aos avanços femininos (e das chamadas minorias em geral), a mistura perigosa entre religião e truculência linchadora.

Petúnia pode não ser Deus, como sugere ironicamente o título, mas é uma espécie de heroína acidental de nossa época, uma figura ao mesmo tempo cômica e trágica que nos acompanha quando saímos do cinema.