É possível ainda, a esta altura da degradação geral do mundo, fazer um filme de amor que não seja um melaço adolescente? Undine, que entra em cartaz nos cinemas nesta quinta-feira (23), prova que sim. O longa-metragem do alemão Christian Petzold ganhou no ano passado no Festival de Berlim o prêmio da crítica e o de melhor atriz para sua protagonista, Paula Beer.
Uma justiça poética, já que uma das histórias contadas ali é justamente a de Berlim. Undine (Paula Beer) é uma historiadora que explica a visitantes locais e estrangeiros as modificações sofridas pela cidade ao longo dos séculos. O nome da personagem, por sua vez, remete à criatura mítica Undine/Ondina, associada às águas pelo menos desde Paracelso.
É no trânsito entre o histórico-concreto (Berlim) e o mítico, no movimento pendular entre a terra e a água, que se desenvolverá essa narrativa fascinante. O filme começa com uma situação das mais banais, uma DR entre Undine e seu namorado Johannes (Jacob Matschenz), que aparentemente tem, ou está prestes a ter, um caso com outra mulher. A única nota da conversa que soa fora do tom é a ameaça que ela faz a ele: “Se você ficar com ela eu te mato”.
Quando, apesar da ameaça, Johannes não comparece ao café onde o casal ficou de se reencontrar, surge um desconhecido que procura se aproximar de Undine: é Christoph (Franz Rogowski), um mergulhador profissional que a ouviu dissertar sobre Berlim e ficou encantado. Ela de início o repele, mas um acidente significativo os une: o aquário suspenso do café se espatifa e sua água literalmente os submerge. É uma cena linda, que marca como que a passagem da dimensão prosaica para a poética.
Organismo anfíbio
O elemento líquido, que sempre remete à ideia de absoluto, de impalpável e atemporal, em contraste com a solidez da terra firme e das construções humanas (por mais efêmeras que estas sejam), é como um ímã a atrair os personagens centrais, seduzindo-os a transcender sua finitude. Água, sangue, vinho, lágrimas: enfim, tudo o que flui.
O encanto de Undine, a meu ver, reside no fato de não negar uma dimensão mítica, sobrenatural, do amor e, ao mesmo tempo, de não aderir plenamente a ela, mantendo um pé no chão, ou antes na margem do rio Spree, que corta Berlim, e no qual Christoph mergulha para inspecionar e reparar pontes construídas há séculos.
Se há, por um lado, ocorrências inverossímeis de um ponto de vista estritamente realista (alguém com morte cerebral “acordar” para a vida depois de meses vegetando; uma pessoa afogar outra maior e mais forte numa piscina que “dá pé”, etc.), por outro lado há freios à fantasia: um vídeo gravado embaixo d’água, por exemplo, não confirma uma aparição fantasmática. (Minhas descrições são deliberadamente imprecisas para não funcionar como spoilers.)
Desse modo, o filme não se deixa apreender plenamente nem numa leitura psicológica nem numa chave fantástica. É um organismo híbrido, ou mais propriamente anfíbio, que permanece vivo e misterioso por todo lado que se olhe. Este, salvo engano, é um atributo essencial de uma obra de arte.
Azor, a ditadura em surdina
Outro belo filme em cartaz, mas por motivos bem diversos, é o argentino-suíço Azor, de Andreas Fontana. A ditadura militar argentina vista por um ângulo original: o de um banqueiro suíço, Ivan De Wiel (Fabrizio Rongione), que vai a Buenos Aires refazer contatos com clientes depois que seu sócio radicado no país desapareceu misteriosamente.
Estamos em 1980, quatro anos depois do golpe militar que instaurou a ditadura e dois anos depois da Copa do Mundo vencida de modo suspeito pela Argentina. Por meio dos movimentos de De Wiel e sua esposa (Stéphanie Cléau) nas altas rodas da cidade, e das conversas entrecortadas que ouvimos em recepções elegantes, decks de piscinas, camarotes de hipódromos e clubes fechados, somos introduzidos a uma teia de relações obscuras que mostram o conluio entre castas diversas (militares, empresários, estancieiros, clérigos e, claro, banqueiros) na sustentação do regime.
Desse modo, introduz-se de modo sutil e gradual o horror daqueles tempos sombrios, revelado plenamente, mas de modo indireto, na sexta e última parte em que se divide o filme. Sem que haja um único tiro, ou sequer uma bofetada, fica evidente toda a brutalidade da ditadura. Não por acaso, o personagem mais sinistro é um monsenhor de fala mansa e gestos contidos.
A selvageria de um regime que matou trinta mil opositores, e torturou ou exilou outros tantos, aparece não de modo estridente, mas como que em surdina, a sottovoce, amortecida por carpetes e tapeçarias finas. “É como se estivéssemos na Europa”, diz o banqueiro suíço à esposa a certa altura.
Desaparecidos
Significativamente, dois personagens cruciais estão ausentes (ou desaparecidos) e são apenas aludidos: o sócio de De Wiel, o controverso e “depravado” Keys; e Leopolda, a filha de um grande criador de cavalos envolvida com um grupo político de resistência.
Não concordo com a visão, bastante difundida, de que o cinema argentino é superior ao brasileiro em geral. Haveria um sem-número de contraexemplos para refutar essa “tese”. Mas há que admitir que, ao abordar sua ditadura, os filmes argentinos costumam ser mais sutis e maduros que seus congêneres brasileiros.
Se aqui, como comentei recentemente, alguns filmes de ficção que buscam reconstituir os chamados “anos de chumbo” tendem a parecer uma catártica brincadeira de mocinho e bandido, numa obra como Azor só há bandidos, ainda que de fala mansa e ternos bem cortados. No filme de Andreas Fontana, a ditadura não é fruto de umas poucas mentes malvadas, mas de um perverso conchavo de interesses. A leitura é muito mais histórica e política, em sentido amplo, sem deixar de ser profundamente moral.
Talvez essa diferença de abordagem, que faz os filmes argentinos sobre o tema parecerem geralmente mais adultos que os nossos, tenha uma explicação simples e alheia ao cinema: lá eles bem ou mal acertaram contas com seu passado ditatorial, por exemplo botando na cadeia generais ditadores. Aqui, ainda vemos um presidente exaltar impunemente os aspectos mais bárbaros da ditadura, como a tortura. É como se, diante desse quadro, alguns dos nossos cineastas se sentissem obrigados a assumir um papel mais veemente, discursivo, didático. Um dia, quem sabe, mereceremos a maturidade.