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Lorran Dias (RJ)

Cineasta, artista, curador e roteirista, graduado pela Escola de Comunicação Social da UFRJ. Dirigiu Perpétuo (IFFRotterdam 2019), entre outros trabalhos com a Anarca Filmes (2015), exibidos em festivais e instituições no Brasil e no exterior. Recebeu o prêmio Memórias da Resistência (Comissão de Direitos Humanos da Alerj, 2018).

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SILÊNCIO INVISÍVEL À BEIRA DO BERRO

 

Meu coração,
Espero que essas palavras te encontrem bem. Hoje, quando tomei café de manhã, ouvi uns latidos de longe, abafados pela chegada de um carro de telemensagens. Estes tipos de automóveis sempre foram muito comuns na favela em que moro, mas nesses últimos anos de auto cárcere privado seu uso tem sido muito diverso.

No início da peste, a associação de moradores fazia uso para informar sobre o que era essa ameaça, os danos, os mais atingidos e as formas de prevenção. Até hoje, eles dirigem palavras de ordem para que desavisados, amantes e transgressores voltem para suas casas.

Gradualmente as pessoas diminuíram a intensidade dos encontros assim que perceberam que não era mais saudável para nenhuma das partes continuar daquele jeito. No entanto, não desistiram um do outro e acabaram por reinventar formas de fazer o afeto transpor-se às fronteiras físicas da distância.

Nesta manhã, o carro com uma caixa de som acoplada ao seu teto, parou na minha vizinha do lado – a Roberta, dona de um puxadinho de casas no número 18 aqui da travessa. A gravação reproduzida era narrada em um tom que pareceu ter sido feita por um locutor de supermercados. Dizia algo como:

“Parabéns, Beta! Hoje você faz aniversário, mas o presente quem ganha somos nós! Sua família e amigos! Essa mensagem é um carinho dos que te amam muito. Mesmo com tantos anos de isolamento, não te esquecemos. Em breve você vai ficar boa e estaremos todos juntos, nos tocando novamente. Lembra como você é fraca para cócegas? Sentimos muito pelo Túlio, ele foi um pai e genro muito querido. Tudo vai ficar bem”

Quando a mensagem acabou, um forró sobre saudade começou a tocar e eu fiquei triste. Foi a primeira vez em que tive coragem de botar meu rosto para fora da janela nesses dias. Eu gostava do Túlio. Vi que outras cabeças também bisbilhotavam pelos limites dos seus muros, portões, janelas, frestas, buracos, buraquinhos, buracos de bala, rachaduras, portais. Fazia tempo que não sentia a brisa me tocar os lábios. Eu vi Roberta do 18 na janela, secando as lágrimas com a toalhinha que ela mesmo bordou. Que cruel, ainda que carinhoso, ouvir uma mensagem tão íntima da boca de quem ela nem conhecia. O automóvel de telemensagens se tornou um protagonista das ruas desertas, ao ecoar vozes de saudades durante o cotidiano da reclusão.

O carro se foi depois da música. O vazio da rua voltou a ser lugar dos cachorros que viravam latas e do cio de uns gatos tristes debaixo de um carro. Os felinos se protegiam – enquanto fodiam – de uma queda d’água qualquer, de uma caixa cheia qualquer.

Ouvindo tudo isso, resolvi te escrever. Finalmente entendi que se nós e o mundo não nos esforçarmos para lembrar, então esqueceremos uns dos outros. Talvez a telemensagem para Roberta fosse um esforço ou artifício, assim como esta carta desinfetada que te mando. Acho que estou por esquecer.

Tem um tempo que a gente não se vê. Não do jeito em que os olhos se percebem. É capaz um algoritmo substituir a presença? Quando estamos de frente um ao outro só podemos responder tudo aquilo que temos naquele momento. Apesar de lembrar de um sorriso, um cheiro e um choro, este receio nas tripas me diz que com tanto isolamento, já não consigo mais segurar a memória de como é estar contigo. São muitos os tempos e os ruídos.

Começou esta parte do ano em que se chove sem saber. Toda vez que olho lá fora, vejo que os muros choram a distância das janelas. Se você encostar o ouvido na parede, aposto que poderá ouvir sobre o mistério em estar só. Se colocar a orelha no coração, então escutará o segredo do seu próprio lar. Nunca antes fomos tanto nossa própria morada, nem olhamos tanto para nossas próprias engrenagens.

Queria te apresentar uma amiga. Mesmo no meio da pandemia, foi obrigada a se mudar há pouco tempo para a casa de trás. Nós conversamos pelas paredes dos nossos banheiros, que são colados um no outro. Se chama Ivonete, disse que precisou se mudar porque sua mulher foi detectada positiva pelo governo e morreu de uma semana para outra. Pelo que me contou, a esposa de Ivonete deixou um áudio de que havia se sentido abandonada. Não pela família e amizades, mas pela História dos Imunes.

Disse que mesmo trabalhando a vida toda em um hospital, quando precisou de um respirador, foi trocada na lista de espera por um filho de um político que não conseguiu vaga em uma rede privada. Debilitada e frustrada, ela decidiu ir para casa deixar para lá. Se sentiu tão traída que praguejou às instituições, o país, a pátria, o patrão e essa coisa chamada trabalho que te toma da vida, te mastiga e te faz uma massa disforme do próprio ofício, para cumprir objetivos de um alguém maior.

Ivonete disse que trabalhou em um filme uma vez. Pensamos se os diretores de arte de um filme chamado Colonialismo haviam construído fundos falsos ao redor do horizontes de todos nós, atores de um mundo não remunerado.

Juntos, ousamos imaginar como teria sido se no ação, ao invés de seguir a diretriz, tivéssemos cruzado as paredes, revelado o por trás. Como num gesto encenado e vacilante por vontade, que decide no fervor do agora, naturalizar o olhar-diretor como alguém que desconhece tanto quanto o espectador. O que aconteceria se os de cima não souberem o que está por vir?

Nossa conversa foi interrompida pela vinheta de um jornal, o silêncio da razão se fez. Eram quase nove da noite. Percebi pela voz de Ivonete que já estava cansada. Os azulejos já não tremulavam com a mesma força. Sua voz pelos rebocos da parede, me dizia quão triste é descobrir uma música bonita e não ter para quem mandar. Concordamos, versos confidentes nem sempre encontram seus destinatários.

Ivonete precisou ficar na casa de um primo do Maranhão durante o retorno de sua mulher doente. Em um sábado de fevereiro, quando percebeu que as ameixas que ela e sua esposa tanto amavam comprar naquela época do ano não haviam amadurecido, entendeu que deveria voltar em casa correndo, pois sua companheira havia falecido. Quando voltou, não conseguiu ficar na residência, todo objeto era uma memória: onde olhava podia ver partes do corpo de sua mulher. Pegou suas coisas e partiu como quem não sabe o que fazer com sentir saudade.

Não estiquei o assunto porque não queria mostrar que havia ficado afetado com toda essa história. Costumamos conversar antes da novela das 9 e de pontuar nossos encontros cotidianos pela programação da televisão. “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós?” pergunta Milton nas Promessas do Sol.

Enquanto essa ameaça arrisca a vida lá fora, eu mesmo já não sei quanto tempo que estou aqui dentro de mim. Você sabe que dá pra escutar a rua inteira aqui dentro de casa, né? Bailes, forrós, cultos evangélicos, pagodão baiano. Uma polifonia que deforma as fronteiras entre público e privado, e as finas paredes que separam as casas na travessa em que moro.

Vira e mexe enquanto me alongo, tenho ouvido as mães vizinhas gritarem para seus pequenos uma lenda urbana que muito ouvia na minha infância nesta mesma favela. As mulheres amedrontam seus filhos para que não tomem gosto pelo lado de fora, dizem para não saírem de casa pois é possível que surja o Homem do Saco; um sujeito que anda pela noite e leva os meninos que insistiam ficar na rua, para um lugar onde ninguém jamais ouviu falar.

Comentei disso com minha mãe e ela riu, disse que quando pequena, na virada dos anos 70 para 80 no sertão de Crateús as mães falavam sobre o Menino do Couro. Era um jeito de interferir sensivelmente, assombrar a imaginação dos pequenos para que não se aproximassem da pele de boi abatido, que secava estirada ao sol, esperando para ser vendida na cidade ou em outro qualquer lugar.

Depois falou sobre a falecida tia Francisca de Tamboril, uma vítima do contágio opressor de nosso tempo, parente amargurada das misérias que viveu no Ceará. Quando veio para o Rio, Francisca viveu trancada dentro de casa. Ela veio para a Maré, onde boa parte da minha família também veio parar após longas viagens de três dias e três noites em êxodo de um sertão nordestino para o sudeste. Francisca evitava sair da favela pois tinha medo das notícias de desaparecimentos que rondavam o cotidiano da Ditadura Militar naquela época. Era como se o silêncio que se estabelecia ao redor da palavra “Governo” fosse mais aterrorizante do que o Homem do Saco ou o Menino do Couro.

Assim que chegou ao Rio, Francisca comprou um cinto de couro pela primeira vez mas não conseguiu usar, pois toda vez que o prendia em seu corpo um menino aparecia na sua porta lhe pedindo doações de roupa para a igreja do bairro. No dia em que resolveu não doar nada, um boi apareceu morto na porta de sua casa, mesmo por ali onde naquela época, só eram vistos cavalos, porcos e galinhas. Entendeu que era preciso encarar o passado, para viver plenamente o futuro. Minha mãe disse que nunca ninguém mais viu Francisca, e quando foram procurar por esta só encontraram em sua casa um álbum de fotos empoeirado, com registros da estrada na viagem do Ceará para o Rio.

Assim como a ex de Ivonete e Francisca, várias outras pessoas têm relatado na internet que de tanto tempo trancafiadas haviam se tornado sua própria casa onde, organismos moram e presenças habitam. De uns dias para cá tenho visto minhas mesas apoiadas em pernas humanas. Retângulos de madeira com joelhos e panturrilhas peludas. Cabides com ombros, meias com bocas, paredes com ouvidos. Habito uma floresta artificial de móveis animados me contando intimidades e segredos de vidas passadas, de quando o armário era árvore e o celular minério. Lamentam palavras em carne viva para dentes-de-leão.

O que é que me trouxe até aqui? Existe um lugar, além de nós mesmos, de onde saímos e para onde retornamos? Se não fosse o antropoceno, seríamos florestas com os animais? Morreríamos para os bichos e não para as doenças? Morreríamos para a natureza, sendo parte desta, e não para nós mesmos?

Nossas feras, nossos instintos e intuições; nossas subjetividades ingovernáveis, são alvos cotidianos de uma domesticação da vida como ela deve ser, segundo homens brancos. Não imaginamos além das Repúblicas como foram feitas até aqui, pois o cotidiano ainda vive sonhos escravocratas.

Seu cabelo deve ter crescido. Comecei a ter umas rugas e relevos onde não tinha. Quantos anos faz que não nos vemos? Quanto tempo faz que não saímos destas casas embaladas a vácuo? Eu parei de contar depois do milésimo caso.

Quando Túlio morreu, todos ficaram sabendo com um clarão no meio da travessa. Não houve um disse que me disse de boca de portão que trouxesse a informação mais rápido do que aquele gesto. Roberta havia tacado fogo nas roupas do marido vestindo sacolas plásticas nas mãos e uma máscara de proteção de gás.

Ontem um amigo me ligou para dizer que estava com medo que fosse invadido. Por entregadores, vizinhos, assaltantes, testemunhas de jeová, candidatos políticos e agentes do governo. Qualquer um que pudesse ser visto pelo olho mágico, se aproximando de sua porta havia a capacidade de deixá-lo em pânico. Conversávamos e parecia que qualquer um pudesse ser um corpo em estranho. Como se uma vez dentro de sua casa, pudesse ser como dentro do seu organismo, ameaçando sua imunidade. Antes as sociedades internacionais diziam para nós que os inimigos eram os estrangeiros e que os estrangeiros, muitas das vezes nós, eram os imigrantes. Agora, os estrangeiros são nossos vizinhos. A ameaça é o lado de fora, depois das peles e das paredes.

Meu coração preenche o quarto inteiro. Minhas feras habitam cada cômodo, me sinto como um leão na beira da cama, um cavalo na sala de estar. Espero, todos os dias, por um momento não anunciado – ainda que prometido. O dia em que tudo passa. Aquela semana que vem, que nunca chega. Esse mês que nunca passou.

Enquanto os presidentes continuam a se beijar com línguas coloniais, me deito de bruços na laje e sinto o sol queimar minhas costas em um tempo outro. Respiro. Há quanto tempo estamos esperando? A cada semana que passa, muitas outras parecem ainda a vir. Desde o primeiro dia, não nos falaram quando que acaba tudo isso. Eu sinto a cidade especular como um silêncio invisível à beira de um berro.

Será mesmo que as pessoas estão conseguindo descansar? Que difícil é lidar consigo mesmo, encarar os vergalhões dessa prisão que se criou aqui dentro, depois de tantos atlânticos e rodovias percorridas.

Estão todos trancados trabalhando em novas formas fantástica de habitar o mundo? Ou será que o vírus-capital está agindo, silenciosamente, dentro de cada perímetro privado para um gerenciamento de crise?

Flutuo. Abro os olhos e vejo as poeiras sobrevoando o chão. Um boi translúcido, revestido de sal grosso, sobe pelas escadas e repousa à minha frente. Nos encaramos por um tempo, sinto saudades do dia lá fora. Esqueci como se beija o sol.

Afetuosamente,
Um morador.

Publicado em 1/7/20

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