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Exposição Entre nós: 10 anos da Bolsa ZUM/IMS

Garapa (São Paulo, SP, 2008)

 

Publicação

Postais para Charles Lynch. São Paulo: Edição do autor, 2015.

 

Vídeo

Postais para Charles Lynch, 2023
Vídeo, 6’15”

Em fevereiro de 2014, um adolescente carioca foi preso pelo pescoço a um poste enquanto recebia chutes e socos. Ao comentar a cena, a telejornalista Rachel Sheherazade disse tratar-se de um ato compreensível, praticado por cidadãos de bem. Neste livro de artista, o Coletivo Garapa captura frames de vídeos de linchamentos brasileiros disponíveis no YouTube e insere no código-fonte da imagem comentários deixados por usuários que muitas vezes se identificam com os linchadores. No final do livro, uma peça de aço guarda uma fita magnética utilizada para backups, com cerca de 200 vídeos baixados da plataforma.

O título do trabalho poderia ser uma alegoria, mas cartões-postais com fotografias de linchamentos foram comuns durante o século XIX nos Estados Unidos (o termo “linchamento”, indica uma das versões, teria origem na atuação de um juiz do estado da Virgínia chamado Charles Lynch). Neles, adultos e crianças sorriem, enquanto árvores sustentam corpos pendurados, “pastoril cena no valente Sul”, como canta Billie Holiday ao descrever o horror na música “Strange Fruit”. No início dos anos 2000, esses crimes majoritariamente raciais e disfarçados de justiçamento ganharam novas e eficientes formas de circulação, com a popularização dos sites de compartilhamento de vídeos.

Pesada e revestida de aço, a obra do Coletivo Garapa se assemelha a uma cápsula que preserva a frágil memória contemporânea virtual, mais precisamente os registros de um violento comportamento social cuja imagem foi, ao longo dos últimos séculos, utilizada para difundir ideias supremacistas.
(Ângelo Manjabosco) Bolsa ZUM/IMS 2014

Depoimento

 

Transcrição do depoimento

Olá, eu sou Paulo Filauer, do Coletivo Garapa, um dos autores do trabalho Postais para Charles Lynch, que é um livro-objeto sobre o tema dos linchamentos no Brasil, mais especificamente sobre as imagens desse tipo de violência que circulam pela internet. O trabalho foi motivado por duas imagens que circularam muito em 2014: o vídeo de Fabiane Maria de Jesus, linchada no Guarujá, acusada de bruxaria, e as fotos de um adolescente negro acorrentado a um poste no Rio de Janeiro. Essas duas imagens integram o trabalho. A realização desse trabalho envolveu uma pesquisa de arquivo sobre a representação da violência, desde as gravuras de Debret sobre a escravidão no Brasil do século 19, até os cartões postais dos Estados Unidos do século 20, que inspiraram o título. O termo linchamento vem do sobrenome de Charles Lynch, uma espécie de coronel norte-americano do século 18. O livro tem páginas impressas e costuradas em uma estrutura de aço; ele mede 17 por 28 cm e 5 cm de altura. As imagens foram encontradas na internet, em centenas de vídeos de linchamentos ocorridos no Brasil e depois manipuladas digitalmente. Inicialmente, nós transformamos essas imagens em texto, abrindo-as em um Bloco de Notas, o que resulta em um tipo de código. Depois, nós inserimos comentários de ódio também encontrados na internet. Ao salvar esse código de novo como uma imagem, o texto inserido provoca ruídos e distorções na cor e na forma. Essa técnica é chamada de Glitch na arte digital. Por exemplo, a primeira imagem do livro mostra a cabeça de um homem pressionada no chão áspero por uma mão, que aperta o seu pescoço, mas a cor da pele de ambos tem um tom verde-escuro, e as bordas da imagem também tem linhas verticais e horizontais, como se o meio tivesse sido deslocado um pouco para o lado. Em outra imagem, pernas e pés rodeiam um corpo deitado no chão. Uma pessoa parece que vai chutá-lo, mas a imagem está arranhada e manchada por tons vivos de amarelo, laranja e verde. Nós também intercalamos páginas que mostram o processo de intervenção digital: elas contêm códigos alfanuméricos que ocupam a página inteira em linhas e colunas simétricas, interrompidas em alguns pontos pelos mesmos comentários de ódio inseridos nas imagens. Um comentário diz, por exemplo: “Lindo ver ladrão sendo linchado, pena que não morreu”. No final do livro, há um roteiro de um linchamento fictício baseado em testemunhos reais encontrados na internet. O roteiro começa assim: Fade in, cena 1. Rua na periferia de Barra do Fogo. Exterior, dia. Imagens de uma rua de terra batida com casas pequenas e esparsas, a maioria sem reboco. Uma multidão se aglomera desorganizadamente. A imagem é gravada em primeira pessoa por uma câmera de celular que avança instável pela rua. O câmera acompanha o grupo, que se aproxima de uma casa de pau a pique, à esquerda do quadro. Ouvem-se muitas vozes que se misturam em um ruído indiscernível. O último item do livro é uma fita magnética em formato LTO, muito utilizado para backup, encaixada em um recorte na moldura de aço. Nessa fita, estão gravados todos os vídeos utilizados na pesquisa, e ela é acompanhada por um índice com seus títulos originais. Por exemplo, a letra A, “A cronologia do linchamento no Guarujá”, “A crueldade do linchamento, mulher linchada morre”, “Acusado de assaltar casas é linchado por moradores”, “Acusado de furtar carteira dentro do ônibus é linchado no terminal do Boqueirão”, e assim por diante. Para concluir, no fundo, esse trabalho quer discutir como nós, artistas, podemos ou devemos lidar com as imagens da violência. Em 2015, só no YouTube, tinha mais de 31 mil vídeos de linchamento. Como, então, reagir diante desse fluxo incessante? A nossa conclusão, resumida nesse trabalho, é que, se a gente não tem como escapar dessas imagens, nós devemos, então, enfrentá-las com olhar crítico, decifrando os seus códigos.

O coletivo é formado pelos jornalistas e artistas visuais Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes. No livro de artista Postais para Charles Lynch, o coletivo discute a representação visual do linchamento no Brasil contemporâneo, a partir de um episódio de violência acontecido no Rio de Janeiro em 2014.