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Exposição Entre nós: 10 anos da Bolsa ZUM/IMS

Letícia Ramos (Santo Antônio da Patrulha, RS, 1976)

Microfilme, 2014-2023
Fotografias impressas em 2023 em pigmento mineral sobre papel de algodão.

Microfilme, 2014-2023
Fotografias impressas a partir de microfilme em 2023 em pigmento mineral sobre papel de algodão.

Microfilme, 2014
Filme instantâneo colorido (Polaroid)

 

Microfilme, 2014-2023
Fotografias ampliadas em 2023 em papel de gelatina e prata a partir de positivo fotográfico.

“Como seria um lugar no futuro em que o homem não mais existisse e a natureza começasse a voltar a sua forma original?” Para responder a essa pergunta, a artista Letícia Ramos se aventura pela estreita costa fronteiriça que une o Rio Grande do Sul ao Uruguai, à altura da lagoa dos Patos. Em uma paisagem varrida por dunas, lagoas e cavalos selvagens, a artista busca vestígios e movimentos sutis: o rastro do vento e dos pássaros; um meteorito de isopor; indícios humanos e espécimes vegetais. As longas exposições de 30 minutos, as ranhuras do filme amplificadas e a claridade ofuscante dão apelo sobrenatural ao rigor científico. Acostumada a territórios desabitados, Ramos sabe que a construção de uma paisagem é a construção de uma linguagem, por isso a viagem se inicia desde a investigação histórica e material dos instrumentos de trabalho, como câmeras improvisadas com polaroides e microfilmes. Usado há décadas para arquivar documentos e lhes dar autenticidade, o microfilme ressurge aqui como o elo perdido entre o passado e o futuro, a ficção e a realidade. Como em outros trabalhos, Ramos conduz seu périplo com a voz de um personagem imaginário, neste caso um faroleiro esquecido. É ele quem a guia por esse reino de céu e terra, de sonhos e mistérios.
(Thyago Nogueira) Bolsa ZUM/IMS 2013

Depoimento

 

Transcrição do depoimento

Como seria um lugar em que a natureza começasse a voltar para a sua forma original? Como seria esse espaço transitório em que o homem não existe mais, que há o vaivém das marés, que a paisagem é sujeita todo o tempo à força dos ventos? O conjunto de trabalhos do projeto Microfilme ilustra esse movimento: o ir e vir das águas, das areias e dos ventos, ao longo de eras passadas, futuras, numa região no extremo sul do Brasil, a região da lagoa do Peixe, que foi justamente formada pelo trabalho incessante de elementos geomorfológicos. O microfilme é um material quase em extinção, mas ele ainda é utilizado para reprodução, preservação, e substitui legalmente documentos originais para compactação física dos arquivos, bancários e contábeis, principalmente. Ao microfilmar essa película, eu tentei criar um documento original dessa paisagem efêmera e atemporal que a natureza se encarrega de conquistar dia a dia. Nessa exposição, eu estou mostrando uma parte desses trabalhos que foram feitos, e o espaço físico aqui no Pivô se organiza assim: na nossa frente, tem um corredor profundo, de uns 4 metros por 1,5 de largura, que dá uma aparência bem estreita. Na parte da direita, tem uma grande esquadria de ferro na parte de cima, e a parte da esquerda e o fundo são pintadas de preto. A do lado direito é branco. O espaço projeta esse ponto de fuga, que vai para um centro da fotografia, que ocupa quase toda a largura dessa parede do fundo. Ela é branca e preta, tem mais ou menos um metro e meio por 60 cm e é toda arranhada no sentido horizontal. Também pontilhada e com faixas de luz brancas na parte da base da fotografia. O horizonte da imagem é formado por uma revoada de pássaros que se altera sobre essas linhas brancas e esses riscos. A lateral da fotografia tem uma faixa branca mais estreita e uma [faixa] cinza, e a gente não consegue dizer ao certo qual é a data dessa imagem. Toda panorâmica tem uma espécie de borda, o que dá a impressão de que o microfilme foi impresso na sua totalidade, que não teve nenhum tipo de corte dessa imagem. No lado esquerdo, tem uma outra fotografia panorâmica, o Panorama 15. É bastante grande, tem 2,25 m por 90 cm, e é uma paisagem de uma vegetação, que se nota principalmente nas laterais, e que são sobrepostas por causa do processo de longa exposição de uma pequena movimentação que eu fazia com essa lente. Ela forma uma imagem abstrata, mas que, com o tempo, a gente vai percebendo uma árvore, um galho, tudo é muito sutil. As duas imagens se relacionam muito com o desenho. Essas duas panorâmicas estão molduradas com uma madeira avermelhada, não tem vidro, e por isso a gente consegue perceber a textura do papel, a sua sombra e os arranhões que estão no microfilme, no papel parecem acontecer na própria matéria. É como se o próprio papel fotográfico estivesse arranhado. Do lado direito, tem três conjuntos de fotografias menores. O primeiro grupo, Meteoritos, é formado por quatro imagens de [tamanho em] torno de 20 por 25. Elas são feitas com papel negativo direto, com brilho. O fundo é preto, e no centro tem uma espécie de rocha, toda perfurada e esponjosa. As concavidades são brancas. Esses meteoritos, na verdade, são pedaços de isopor que foram recolhidos próximos a essa região da lagoa e que foram corroídos pelo tempo, pelas marés, mas que, na paisagem, tinham esse aspecto mesmo de meteorito, de uma rocha vulcânica. O objeto foi filmado em uma máquina microfilmadora, e depois ampliado em papel fotográfico direto, o que fez com que tivesse o mesmo aspecto do negativo. Cada imagem é a microfilmagem de uma face desses objetos. Logo depois, tem uma fotografia pequena, mais ou menos 10 por 15 sobre um passe-partout branco de 20 por 25, também emoldurado com essa moldura de madeira avermelhada. Uma fotografia polaroide e todos os elementos da polaroide foram preservados. Um papel tipo seda fica em volta do papel fotográfico, dá para ver um pouco ainda do químico da fotografia grudado sobre esse papel. A imagem é composta por um solo gramíneo bem escuro com fundo azul e um grid de linhas pretas está sobre a imagem. A fotografia tem uma coloração violeta-azulado, e existe a percepção de ser alguma coisa como um visor de equipamento, como uma espécie de máquina, digamos assim, que escaneia essa vegetação. Em seguida, temos uma microfilmagem de um espécime vegetal. Esse espécime está sobre uma espécie de folha de catalogação botânica; na parte de baixo dessa folha, tem uma tabela não preenchida e, do lado esquerdo, quatro perfurações. A imagem também tem um fundo todo violeta, o que remete aos arquivos de microfilme que a gente costuma consultar, e essa espécie vegetal tem as folhas um pouco triangulares, meio geométricas. Ela é branca e projeta uma sombra brilhosa, branca também, sobre esse fundo púrpura. Quando a gente sai desse corredor e olha novamente, o que dá para perceber é que é um conjunto de documentos de um lugar ficcional, uma espécie de cosmogonia de um viajante sem tempo e que mostra esse movimento perpétuo da natureza.

Artista e videomaker, Letícia tem como foco de investigação artística a criação de aparatos fotográficos próprios para a captação e reconstrução de imagens e a criação de ficções com tais aparatos. No projeto Microfilme, a artista registra uma viagem de exploração a um local ermo, construindo evidências paleontológicas a partir de ampliações panorâmicas feitas com microfilmes e polaroides.