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Flieg. Tudo que é sólido

Audiodescrição

Estação 5

Fábrica Pirelli, 1954

 

Fábrica Pirelli. Santo André - SP, 1954. Foto de Hans Gunter Flieg / Acervo IMS

Indústria

 

A releitura do acervo de Flieg neste início do século xxi — caracterizado pela construção da sociedade do conhecimento e da informação, em muitos aspectos oposta à sociedade industrial de meados do século passado — permite que sua obra seja interpretada por novas perspectivas. Sua produção fotográfica no campo da fotografia industrial constrói-se sempre mediante uma elaboração formal muito consciente. Isso pode ser observadas tanto no uso que Flieg faz da tradicional câmera de báscula de grande formato — a exemplo de fotógrafos como Germaine Krull, na Alemanha, e Charles Sheeler, nos eua — como no manejo da então relativamente nova câmera Leica de pequeno formato, que estabeleceu, a partir da década de 1920, as bases de uma nova fotografia no período entreguerras. Além disso, Flieg sofreu forte influência da Staatliches Bauhaus, escola alemã de artes aplicadas (sobretudo artes plásticas, arquitetura e design) e também dos construtivismos russo e soviético de Alexander Rodchenko e El Lissitzky.

O trabalho de Flieg estava alinhado à perspectiva da escola alemã da Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit), voltada para o registro fotográfico direto dos objetos industrializados e naturais, bem como para a captura do espaço industrial, de suas instalações e de seus equipamentos. Por outro lado, a fotografia de Flieg relaciona-se também com elementos de uma retomada contemporânea da objetividade, retomada de caráter mais conceitual e crítico, comum a projetos de diversos fotógrafos do pós-guerra que buscaram uma documentação seriada dos elementos construtivos e arquitetônicos de uma sociedade industrial que já atingira seu ciclo entrópico. A ambivalência da própria objetividade fotográfica, agora trabalhada em um sentido crítico pós-moderno, é o que, em última análise, permitiria liberar as imagens de seu contexto original, possibilitando, dessa maneira, leituras formais e poéticas dos objetos e equipamentos registrados que transcendessem sua dimensão referencial e documental. A fotografia industrial de Flieg, produzida entre as décadas de 1940 e 1980, sempre de alto rigor formal, permite igualmente que estruturas, equipamentos e objetos industriais registrados de maneira objetiva e direta conduzam, em muitos casos, a uma releitura destas imagens — em especial das que têm forte viés de monumetalidade e abstração. Feita nos dias de hoje, tal releitura amplia e atualiza a relevância da produção do fotógrafo no âmbito da fotografia moderna e contemporânea no Brasil.

A partir dos anos 1940, quando começa a atuar profissionalmente no Brasil, o trabalho de Flieg alia o domínio da elaboração formal da imagem fotográfica a um absoluto controle da iluminação, da exposição e do processamento de filmes e ampliações. Essas imagens extremamente elaboradas, produzidas em sua maioria como trabalhos comissionados — principalmente as fotografias de indústrias e de produtos —, nos encaminham para o universo imagético do século xx, voltado para o “êxtase das coisas” característico do pós-guerra. O período foi de forte retomada dos ciclos de crescimento industrial, agora não mais direcionados para os esforços armamentistas, mas para a produção de bens de capital e de consumo, capazes de gerar a realização de valor num contexto de rápido crescimento urbano e populacional, marcado, no Brasil e em outros países, pela forte migração do campo para as cidades. Nesse contexto, a fotografia passa a ser a ferramenta por excelência do registro e da visualização dos objetos da sociedade industrial, bem como da sua subsequente comercialização e circulação. De fato, a publicidade e a propaganda, especialmente a partir dos anos 1950, incorporarão maciçamente a fotografia a suas ferramentas de convencimento, sedução e reificação dos bens manufaturados de consumo, momentos essenciais do ciclo de realização de lucro e retorno do capital investido. E é através deste ciclo absolutamente recorrente do capital, que em sua permanência e constância de acumulação de valor tudo transforma e liquefaz, que se pode compreender hoje o deslocamento radical da materialidade industrial e social representada tão iconicamente nas fotografias de Flieg aqui reunidas. Na atual e aparente desmaterialização do mundo promovida pela virtualização e espetacularização alienante dos processos e ciclos cada vez mais intensos de acumulação de valor da nova indústria de algoritmos, novamente, “tudo que é sólido desmancha no ar”.