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A estreia de Paulo Mendes Campos na imprensa

06 de novembro de 2020

Estreias costumam ser trepidantes, mas nem sempre marcam tão profundamente quanto a de Paulo Mendes Campos, nascido em 1922 e, portanto, quase menino quando publicou “Raul de Leoni – poeta enganador”, em 1939, seu primeiro artigo na imprensa, e conservado em seu arquivo no IMS.

"Raul de Leoni, poeta enganador", crônica de estreia de Paulo Mendes Campos na imprensa, em 1939, no jornal da Arquidiocese de Belo Horizonte, O Diário. Arquivo Paulo Mendes Campos/ IMS

 

Tem-se a dimensão do que o fato representou para ele quando, exatos trinta anos depois, já cronista veterano na revista Manchete, ele assinou uma série de três crônicas intituladas “Ofícios frustrados”. Seriam reunidas posteriormente em uma só, de três segmentos, em O anjo bêbado e, em seguida, em Cisne de feltro, onde se lê:

Uma vez, e só uma vez conheci a glória: foi quando publiquei meu primeiro artigo no jornal, sobre a poesia de Raul de Leoni. Apenas a família e os amigos mais íntimos tomaram conhecimento desse instante de plenitude, mas pouco importava: a glória não está fora, mas dentro de nós.

Alegria e conforto para os que concordam com o cronista. Felizmente a glória está dentro de nós e podemos senti-la livremente. Temos o direito inalienável de lhe conferir o lugar que bem queremos. E, na maioria das vezes, de forma diversa da que outros a veem.

No caso do nosso cronista, está dito, não foram os textos primorosos que escreveu nos mais importantes jornais do Rio de Janeiro, nem o lugar de destaque que ocupou nas páginas da não menos prestigiosa revista Manchete que, do ponto de vista dele, lhe conferiram glória. Tampouco crônicas em que alcançou altitudes excepcionais como “O amor acaba”, “Pequenas ternuras”, “Atletas”, e inúmeras outras, lhe foram tão caras quanto a “Raul de Leoni” da estreia, publicada no jornal da Arquidiocese de Belo Horizonte intitulado O Diário. Esse periódico seria transformado no Jornal de Minas e, finalmente extinto, depois de vendido a Afonso Paulino.

Paulo ainda era adolescente quando publicou o artigo, e é claro que aí não se escondem os arroubos do jovem indignado com a “quase indiferença” da crítica em relação ao poeta de Luz mediterrânea (1922), assim como – argumenta ele – com a omissão do nome Leoni, petropolitano nascido em 1895, nas antologias da época. Citado em alguma, era considerado uma promessa, e aqui o rapazinho estreante já consegue ver além, e acertar: “na verdade, o livro era ainda uma promessa, ao mesmo tempo que era também uma das realidades tangíveis da nossa poesia”.

Não me causa estranheza ler que, para o autor, Raul de Leoni é o seu “poeta preferido entre todos”. Ainda que, por ocasião da publicação do artigo em O Diário, já houvesse um Manuel Bandeira de Estrela da manhã, um Drummond de Alguma poesia e famoso como o “poeta da pedra”, de uma Cecília Meireles de Viagem.

A preferência de Paulo por esse poeta singular me parece compreensível. Para começar, devia agradar muito ao seu espírito livre o fato de não se poder, com tranquilidade, filiar a poesia de Raul de Leoni a nenhuma das correntes literárias vigentes. As tentativas de enquadrá-lo em uma escola são várias e inúteis, e, no entanto, jamais se duvidou da qualidade de seus versos. Tristão de Ataíde foi um deles, ao se referir à “ poesia espontânea e moderna em sua exposição impregnada de sensibilidade aguda e pensamento profundo”. Bem ao gosto de Paulo Mendes Campos – é o que se vê na poesia entranhada em suas crônicas.

“A vida para ele foi um prazer cerebral, uma constante renovação de beleza”, afirma ainda Paulo em seu artigo. Sim, prazer cerebral que Leoni substituiria pela exaltação do instinto, como expressou nos versos do soneto de mesmo nome:

Glória ao Instinto, a lógica fatal
Das cousas, lei eterna da criação,
Mais sábia que o ascetismo de Pascal,
Mais bela do que o sonho de Platão!
[...]
És a minha verdade, e a ti entrego,
Ao teu sereno fatalismo cego,
A minha linda e trágica inocência!”

Em segundo lugar, gostavam do arrojo na vida, o que não significa dizer que fossem barulhentos. Ao contrário: eram elegantes e suaves, internas e intensas eram as grandes experiências que escolheram viver. Do ponto de vista biográfico, talvez o adolescente que, quando menino, tinha fugido de casa, armado de revólver, com destino ao Mato Grosso para viver com os índios, se sentisse atraído pelo espírito arrojado de Raul de Leoni, cujas aventuras nas noites cariocas são referidas por Sérgio Alcides no estudo definitivo que fez sobre o poeta para o vol. XII da Coleção “Poetas do Brasil”, de 2001.

Corajoso o suficiente para desafiar a tuberculose tomando banho frio, a intrepidez de Raul de Leoni encontra paralelo na experiência com o LSD feita por Paulo Mendes Campos, em consultório médico. Os desfechos das iniciativas e do modo de viver são bem diversos: Raul de Leoni, obrigado a isolar-se na Vila Serena, em Itaipava, morreu em 1926, aos 31 anos. Paulo Mendes Campos viveria até 1991, quando um infarto o levou, aos 69 anos.

“Voluptuoso e pecador”, disse dele Múcio Leão. Raul de Leoni publicou seu único livro, Luz mediterrânea, em 1922, quando a Semana de Arte Moderna consagrava a mudança de rumo da poesia brasileira. No mesmo ano de 1919 em que Manuel Bandeira lançava o seu Carnaval, livro em que faz uma afirmação de vida, Leoni publicava a plaquete em homenagem a Olavo Bilac, Ode a um poeta morto, depois incorporada ao Luz.

Admirador do poeta que “descreu no pensamento para acreditar no instinto”, Bandeira homenageou-o na crônica “Raul de Leoni”, em que reconhece que ele “foi entre nós o único poeta (único bom, está claro) de emoção puramente filosófica. [...] Para Raul, a emoção residia nas ideias em si mesmas. Elas eram para ele uma inesgotável nascente de lirismo”.

Bandeira, tuberculoso comedido que chegou aos 82 anos de idade, não se conformava com os riscos a que se expunha a vida extravagante do poeta do instinto. Consta que, certa vez, desabafou a Rodrigo Mello Franco de Andrade: “O Raul é muito inteligente como poeta, mas como doente é burríssimo”.

Quando Paulo Mendes Campos escreveu o artigo, se confirmarmos 1939 como a data de publicação, havia apenas duas edições do livro de Leoni: a de 1922 e a de 1928. Só a partir da terceira edição, de 1940, e sobretudo da quarta, de 1946, é que o livro se tornou sucesso de venda, afirma Sérgio Alcides, que prossegue. “É difícil entender por que Luz mediterrânea teve tantos e tão variados leitores ao longo do século XX”.

De fato, mas é certo que Paulo Mendes Campos foi um dos que, precocemente, entenderam a fundo esse livro singular. E ainda que, no futuro, como erudito sem pose, tenha sido grande conhecedor das poesias francesa, inglesa e de outras, além da brasileira, naturalmente, entende-se, por seu natural refinamento, o gosto pelos versos desse poeta amigo de modernistas cariocas, mas que manteve o seu “ideal classicizante de harmonia e beleza” intocado.

Tamanha identificação levou um amigo de Paulo a protagonizar uma “aventurazinhna” adolescente – conta o cronista para encerrar seu artigo, dando, assim, aquele toque de graça que o caracteriza. A “aventurazinha” constou do seguinte: o rapaz disse um soneto a uma jovem, atribuindo a autoria a Paulo Mendes Campos. Ela o ouviu e, ao final, disse, complacente, “É, para quem está começando, não está mau assim”. Acontece que o soneto era o “História antiga”, de Raul de Leoni, considerado um dos mais belos da língua portuguesa:

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia.

Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante,
Em que seu mudo olhar no meu repousa.

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.


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