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Produção de Vania Toledo chega ao IMS

21 de setembro de 2023
Studio 54, Nova York. 1984. Coleção Vania Toledo/ Acervo IMS

Uma das principais documentaristas da efervescente cena cultural dos anos 1970 aos 90, Vania Toledo (1945-2020) deixou uma obra pulsante, em que se destacam o registro dos personagens marcados de suor e purpurina que circulavam pelos clubes noturnos e figuras centrais da música e do teatro nacional. Constituído majoritariamente ao longo de sua trajetória na imprensa, na noite e em seu estúdio particular, o acervo da fotógrafa acaba de ser adquirido pelo Instituto Moreira Salles. A coleção é composta por cerca de 250 mil imagens, sobretudo retratos em preto e branco, além de reportagens, livros e documentos.

Vania amava a noite e as pessoas. "Meu vício é gente", costumava declarar em entrevistas. E isso era visível. A Yashica que sempre levava a tiracolo era a senha para que as pessoas se sentissem convidadas a posar para ela, ali mesmo, nos corredores e bastidores dos espetáculos, ou em seu estúdio. Essa proximidade com as pessoas fotografadas e com as cenas que captava caracterizam a sua obra e a sua carreira.

No acervo que chega agora ao IMS, onde será preservado e difundido, há retratos de Gal Costa, Ney Matogrosso, Caio Fernando Abreu, Rita Lee, Cazuza, Pelé, Milton Nascimento e José Celso Martinez Corrêa, além de registros da vida noturna de São Paulo nos anos 1980. Outro destaque é a série pioneira de nus masculinos que deu origem ao livro Homens: ensaio (1980), com personagens famosos e menos conhecidos.

Vania Toledo em autorretrato. Coleção Vania Toledo/ Acervo IMS

 

Nascida em 1945 na cidade de Paracatu (MG), Vania mudou-se na década de 1960 para São Paulo, onde cursou ciências sociais na USP e passou a trabalhar na área de educação da Editora Abril. Até os 30 anos, fotografava apenas de forma amadora. No fim dos anos 1970, decidiu se dedicar à profissão e iniciou sua carreira no jornal Aqui São Paulo, onde se tornou responsável pela coluna de festas.

A partir de então, passou a colaborar com diferentes jornais e revistas do Brasil e do exterior, como Vogue, Interview, Claudia, Veja, IstoÉ, Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Time e Life. Em 1981, abriu seu próprio estúdio, Studio Salto Alto, na capital paulistana, que funcionava num sobrado no bairro dos Jardins, em São Paulo, onde pôde aprofundar seu trabalho como retratista, reunindo personalidades da música, do cinema e das artes visuais para sessões de fotos imersivas.

No acervo, há muitas imagens feitas nos bastidores do teatro. Ela começou sua carreira fotografando gratuitamente atores que frequentavam o circuito da praça Roosevelt e precisavam de materiais de divulgação. Posteriormente, documentou espetáculos marcantes da história do teatro brasileiro, encenados durante a ditadura militar, como a montagem de Macunaíma dirigida em 1978 por Antunes Filho. Também retratou astros como Marília Pêra e Raul Cortez, Marco Nanini, Ney Latorraca, Irene Ravache, entre vários outros, desenvolvendo uma intensa relação com a cena teatral, que marcaria toda sua trajetória. Veja abaixo algumas dessas fotografias:

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Em paralelo ao trabalho nas redações, na década de 1980, Vania documentou seu próprio entorno, especialmente as festas que frequentava na cena underground no centro de São Paulo. De maneira espontânea, registrava as pessoas que se entregavam nas pistas de dança, com roupas e comportamentos que questionavam os padrões sociais. As fotos trazem flagras dessas personagens, captando o ritmo e a energia de um período e ambiente, marcados por purpurina e música disco. Em entrevista, a fotógrafa comenta as imagens: "Eu gostava da noite, de dançar, de festa. A fotografia tem muito a ver, no meu caso, com o olhar e a liberdade de ação. Eu fazia da pista de dança o meu estúdio. Tinha uma espontaneidade que eu adorava. [...] Eram personagens muito interessantes, muito libertárias."

O acervo traz também trabalhos realizados para a indústria fonográfica. Vania assinou capas de discos consagrados, como Refestança, de Gilberto Gil e Rita Lee, Televisão e Cabeça dinossauro, dos Titãs, além de registrar suas turnês. Outro artista muito fotografado é Ney Matogrosso, com quem Vania cultivou uma estreita amizade.

É também de sua autoria a famosa foto de Cazuza abraçado ao escritor Caio Fernando Abreu, em 1988. Vania documentou ainda Rita Lee grávida e a escritora Cassandra Rios, que teve mais de 30 livros censurados durante a ditadura. Outro destaque são as imagens que clicou em Nova York, no fim dos anos 1970, onde registrou ícones como Andy Warhol e Truman Capote na lendária discoteca Studio 54, em Manhattan. Veja abaixo alguns dos numerosos registros que fez de Rita Lee:

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A coleção inclui ainda a famosa série Homens: ensaio (1980), primeiro livro publicado por Vania e um dos mais importantes de sua carreira. Para o ensaio, a fotógrafa convidou amigos para posarem nus diante de suas câmeras, invertendo as posições de artista e modelo, tradicionalmente ocupadas por pessoas do gênero masculino e feminino, respectivamente. A série inclui retratos de nomes como Caetano Veloso, Roberto de Carvalho e Ney Matogrosso.

No IMS, o acervo de Vania se soma a outros, como o de David Drew Zingg, Madalena Schwartz e Otto Stupakoff, que registram a efervescência cultural e o questionamento dos padrões de comportamento no país.

O coordenador de fotografia contemporânea do IMS, Thyago Nogueira, comenta a incorporação da coleção: “É uma honra trazer ao IMS acervo tão importante para a história da fotografia brasileira. Vania foi ao mesmo tempo uma cronista irreverente da noite paulistana, franqueando acesso aos momentos de intimidade e descontração de artistas e personalidades de toda classe, e uma retratista rigorosa, que usou seu carisma transbordante para construir a cumplicidade com que registrou boa parte da cena teatral e cultural brasileiras. Em vez de uma observadora distante, era uma fotógrafa implicada em seu trabalho. Ainda há muito que estudar em seu arquivo, mas é notável como a informalidade e a descontração se transformaram em estratégias para registrar – e viver – de dentro as mudanças culturais e comportamentais dos anos 70, 80 e 90. O acesso à efervescência das festas noturnas, a inversão de papéis de gênero e mesmo a adoção de uma máquina fotográfica amadora fazem parte da revolução visual promovida por uma artista libertária."

Juliano Toledo, filho da fotógrafa, ressalta a importância da aquisição do acervo pelo IMS: "Minha mãe foi uma fotógrafa além do seu tempo. Imagina, uma mulher em plena ditadura militar fazer um livro com ensaios de homens nus. Ela não tinha pudores! Ela conseguia captar a essência do ser humano que estava sendo registrado pelo seu clique. Como ela sempre dizia: 'O meu vício é gente'. Agora seu legado vai poder ser apreciado pelas próximas gerações."

Com a aquisição, o IMS passa a ter direito de fazer exposições e publicações para divulgar a obra de Toledo. Já os direitos autorais permanecem com Juliano Toledo, filho e herdeiro da fotógrafa.


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