Durante vinte dias, em 1950, Alice Brill fotografou os pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. Importante não só pelo seu valor estético, esse é o primeiro conjunto de fotografias a retratar, no Brasil, um ambiente de produção artística como uma forma alternativa de tratamento de doenças mentais. Criado para desobstruir os hospitais psiquiátricos de São Paulo – que recolhiam todos aqueles que, na visão da época, perturbavam a ordem da cidade, o que incluía inválidos, bêbados e epiléticos –, o Juquery tinha também a intenção de tratar seus pacientes visando a recuperação e reintegração na sociedade.
Na época, o hospital tinha uma população de aproximadamente 15 mil internos, entre mulheres, homens e crianças – e uma lista de espera de milhares de pessoas aguardando uma vaga. Mas havia ali uma novidade, um avanço dentro da cultura manicomial: o Ateliê Livre, uma sala de artes criadas por Osório Cesar, médico psiquiatra que dirigia a ala, e desde a década de 1920 vinha descobrindo e valorizando ali o trabalho artístico de pacientes com distúrbios mentais.
O Ateliê foi criado oficialmente em 1948 com o objetivo de possibilitar aos pacientes o desenvolvimento de potencialidades que seriam reveladas pelo ato de criação, não havendo interferência na produção - eles eram apenas orientados quanto às técnicas e uso de materiais. Em 1946, a psiquiatra Nise da Silveira também criara no Rio de Janeiro, no Centro Psiquiátrico Nacional, a Seção de Terapêutica Ocupacional, com atividades como pintura e modelagem que funcionavam como uma porta de entrada para o mundo dos pacientes. Em 1952, diante da intensa produção dos ateliês, que resultaram em diversas exposições, foi fundado o Museu de Imagens do Inconsciente, hoje com 350 mil obras em seu acervo.
Em seu trabalho Photograpy from the Psyche: Alice Brill in the clinic of Juqueri, a alemã Lena Schäfller, historiadora da arte e especialista em arte brasileira dos séculos XIX e XX, observa que a iniciativa de utilizar a produção artística para fins terapêuticos foi institucionalizada no Brasil pelo menos 20 anos antes da Europa.
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Admirador dos modernistas, Osório havia sido casado com Tarsila do Amaral e era próximo de artistas e intelectuais como Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Carlos Scliar. Pensando nas atividades do Ateliê Livre, Osório – que já havia convidado Lasar Segall para documentar as atividades dos internos em uma série de desenhos – chamou a artista plástica Maria Leontina para selecionar, classificar e organizar os trabalhos dos internos.
Leontina conhecera Alice Brill no grupo Santa Helena, que reunia, em ateliês no Palacete Santa Helena, na Praça da Sé, em São Paulo, nomes como Alfredo Volpi, Mario Zanini e Francisco Rebolo, e sugeriu seu nome para produzir uma foto-reportagem sobre o Ateliê.
Alice – que posteriormente desviaria seu interesse definitivamente para a pintura – muito provavelmente viu no convite para fotografar os internos mais uma forma de compreender a relação da arte com os processos criativos e inconscientes. As fotos não mostram os internos do Juquery como doentes, como loucos perigosos. Não mostram as crises ou procedimentos médicos. Não mostram o hospital como um espaço de desespero e loucura. Não era essa a ideia. As imagens mostram artistas, seus trabalhos e o convívio no lugar. Alice retrata os internos do Juquery e a reprodução de suas obras com a mesma dignidade com que fotografa artistas plásticos como Alfredo Volpi, Mario Zanini, Hilde Weber, Felicia Leirner, Karl Plattner, Yolanda Mohalyi, Victor Brecheret, Francisco Rebolo e Burle Marx. O cuidado é o mesmo.
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Boa parte dessas fotografias, apresentadas pela primeira vez na revista Habitat, de Lina Bo e Pietro Maria Bardi – Alice era a “fotógrafa oficial” da publicação –, e em 1951 na exposição Artistas alienados, realizada no Museu de Arte Moderna, está hoje salva no acervo do IMS.
Esse conjunto de 51 imagens, feito há quase sete décadas, faz pensar, também, como a arte é, para além de todos os conceitos ou valores estéticos, um lugar de exteriorização, construção e resgate de identidade e um espaço de interação e dignidade. O Ateliê no Juquery chegou a funcionar por cerca de duas décadas. Foi desativado na década de 1970 (Osório Cesar, que morreu em 1979, aposentou-se em 1965) e, em 1985, o projeto foi retomado com a inauguração do museu que leva o nome do psiquiatra.
Em “Diário íntimo: a fotografia de Alice Brill”, dissertação apresentada em sua graduação de jornalismo, Daniela Alarcon, mestra em ciências sociais, afirma que o projeto de tornar público o que ocorria dentro dos muros do Juquery ajudou a dar visibilidade e fazer circular a “produção de artistas, reclusos sob o estigma da loucura. (...) O que talvez tenha contribuído para a mudança, lenta e ainda hoje inconclusa, da mentalidade da sociedade brasileira no que diz respeito aos doentes mentais”.
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Nascida na Alemanha, em 1920, e filha de judeus, Alice Brill chegou no Brasil em 1934, aos quatorze anos, junto com os pais, Erich e Marte Brill, um pintor e uma jornalista que buscaram no Brasil um refúgio do nazismo. Sua intensa produção fotográfica se concentra em pouco mais de dez anos, do final da década de 40 ao início da década de 60. Nesse período, produziu um conjunto de cerca de 14 mil imagens, incluindo aqui um registro rico da arquitetura, do cotidiano e do processo de modernização da cidade de São Paulo em 1954, às vésperas do quarto centenário da capital paulista, realizado a convite de Pietro Maria Bardi.
A partir da década de 60 Alice tornou a pintura sua atividade principal. Era, segundo ela, impossível manter lado a lado as duas artes. Participou de um bom número de exposições de artes plásticas, no Brasil e no exterior, e chegou a colaborar com uma série de críticas de arte para o jornal O Estado de S. Paulo – parte desses textos acabou publicada no livro Da arte e da linguagem, pela editora Perspectiva, em 1988.
Cassiano Viana é jornalista, escritor e tradutor. Editor da revista literária Minotauro, há dois anos mantém o About Light, blog dedicado à fotografia.