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Caderno de cronista: Paulo Mendes Campos

15 de julho de 2015

A Companhia das Letras está lançando De um caderno cinzento: crônicas, aforismos e outras epifanias, que reúne 53 textos até então inéditos em livro de Paulo Mendes Campos escolhidos por Elvia Bezerra. Abaixo, disponibilizamos a introdução escrita por Elvia, coordenadora de literatura do IMS, e compartilhamos uma das crônicas de Paulo Mendes Campos.

(Companhia das Letras, 2015)

O hábito de juntar cadernos é – ou pelo menos era – co­mum entre escritores. Ao longo dos últimos anos substituídos por arquivos gravados, muitos desses cadernos ainda sobrevivem em acervos pessoais, seja em casa de autores, seja confiados a instituições.

Há os que serviam para anotações indisciplinadas, como o de Manuel Bandeira, em que o poeta copiava desde fórmula de matar barata até dados biográficos. Há os essencialmente literá­rios, como o que Mario Quintana ganhou da mãe e no qual, com letra infantil, escreveu seus primeiríssimos poemas. Ou os de Ana Cristina Cesar, fartos, reveladores das múltiplas facetas da autora: a vocação poética, crítica, o talento de tradutora, de editora, além de reflexões agudas, desesperadas, na maioria das vezes.

Mas Paulo Mendes Campos é imbatível com os 55 cadernos que integram seu arquivo, hoje sob a guarda do Instituto Morei­ra Salles (IMS). O cuidado com que os conservou deixa clara a importância desses itens na sua vida pessoal e, acima de tudo, literária. Ali ele registrou alguns lembretes do cotidiano e poucas, mas valiosas, notas biográficas. O que ressalta são as anotações de ideias para desenvolver em crônicas; de frases, dele e de outros; reflexões, planos de antologias, fichamentos de leituras. Sim, fichamentos de leitura, como os de um estudante aplicado. E lis­tas. Muitas listas, não tivesse ele mesmo declarado em entrevista que a filologia era sua vocação natural. São listas de temas por ordem alfabética; de temas a serem desenvolvidos; de persona­gens da literatura universal; de personagens bêbados da literatura universal; de rascunhos de crônicas.

Dificilmente ele terá se perguntado, como Joan Didion, também adepta de caderninhos: “Por que fiz a anotação? Para lembrar, claro, mas lembrar exatamente do quê?” – interrogava-se a jornalista e romancista no emaranhado de suas notas.

Ao contrário de Didion, Paulo Mendes Campos tinha méto­do para fazer seus registros. Desse modo, com frequência as ideias se apresentam encadeadas e claras. Não importa se constam de simples cadernos escolares, ou mais sofisticados, com encaderna­ção de couro. Podiam até mesmo ser agendas de anos passados, convertidas em cadernos em que ele rascunhava parágrafos intei­ros de crônicas ou, como já se disse aqui, ideias robustas que de­senvolveria adiante. Muitas de suas aventuras e descobertas na viagem à Rússia, em 1956, foram anotadas em caderninho de capa de nobre couro marrom, provavelmente russo. E resultaram numa safra de notáveis textos memorialísticos.

Em meio a esse material sobressaem dois cadernos cinzen­tos, que funcionam como tubos de ensaio em seu laboratório de cronista. As páginas lhe inspiraram um conjunto de textos que ele publicou com o título “De um caderno cinzento” nas colunas “Primeiro Plano”, do Diário Carioca, e “Conversa Literária”, da revista Manchete.

O velho caderno de Paulo Mendes Campos / Acervo IMS

 

Caderno velho

Paulo Mendes Campos

Foi entre vinte e vinte e três anos que enchi de notas este caderno gros­so, de capa vermelha. Relendo-o, não chego a rir-me, nem a irritar-me; apenas con­cluo que, se o tem­po, por um lado nos desgasta e nos compromete, por outro lado, a idade reduz as ambições c nos equilibra. A renúncia e o bom senso não chegam a ser duas virtudes intelec­tuais mas apenas o exercício de certezas meio amargas.

Precisaria de toda a minha vida para estudar um único dos temas apontados neste caderno. Àquela época no entanto, não conhecia minhas limitações, nem mesmo podia admiti-las. Estava conven­cido de que, através dos livros, eu com­preenderia afinal o mundo e o deses­pero humano. Porque o homem não po­dia ser outra coisa senão um desespero absurdo, e era irremissivelmente fútil quem pudesse preocupar-se com alguma coisa que não refletisse a insolvência fun­damental do destino.

“Triste” era a mais bela palavra, por­que denunciava seriedade e caráter. Joie de vivre era uma abjeta e incongruente expressão. Del sentimiento trági­co de la vida, o mais belo título de todos os livros já escritos.

Lia muito, com uma parcialidade que eclipsava as obras, recolhendo dos auto­res somente aquilo que correspondesse à minha ideia pessoal da tragédia terres­tre, aquilo que saciasse essa vertiginosa sedução que a melancolia exerce sobre a adolescência. Le bonheur est une monstruosité. Esta frase de Flaubert, escrita no alto da primeira página, era para mim um programa de infelicidade ab­soluta.

Até na caligrafia reconheço o entusias­mo com que anotava as Cartas a um jovem poeta, de Rilke, tipo de litera­tura que, hoje, me intumesce um pouco o espírito. Do grande García Lorca amei, sobretudo, os versos mais antigos, mais queixosos e menos bem feitos. Nesta página sobre Proust há apenas uma hu­milde anotação: écaille significa es­cama. Seguem-se observações abstratas sobre “arte e realidade”, com citações misturadas de JVlaritain, O. M. Carpeaux, Wilde, Dostoiewski, Novalis, Daniel Rops, Unamuno… Já não acho defi­nitivas nenhuma dessas frases, posso di­zer mesmo que, entre todos os conceitos que transcrevi aqui, a respeito do real e o irreal em arte, o mais simpático não é o que me parecia mais acanhado: “Realidade significa, para mim, o que é permanente na natureza humana”.

Minha admiração por Ortega y Gasset transformou-se em tédio por esse filó­sofo precioso de campos de golfe.

Passo correndo por essas notas chin­frins sobre estilo e, ainda mais depressa, por essas notas pomposas sobre “Baude­laire, o amor e o pecado”. Mais adiante, copiei versos de Verlaine, que só pude comprar, por causa da guerra, quando fizeram aqui no Brasil uma edição do poeta. “Tengo verguenza de mi boca triste”, diz Gabriela Mistral, à página setenta. E páginas e páginas de trans­crições de críticas aos autores que eu julgava, incomparavelmente, os maiores de todos os tempos: Baudelaire, Mallar­mé, Valéry e Gide.

Vou parar, Maria, por falta de espaço e por falta de ar. Não devia ter come­çado esta crônica sem fim, truncada e torta como esses dez anos de vida pas­sada, repassada, gasta, errada, vivida inu­tilmente, confusamente, dispersivamen­te. O mundo engoliu o teu filósofo, o teu poeta, o teu prosador. Ganho a vida e nem mesmo sou infeliz. Mas me resta o consolo, em certos dias enevoados, de sol baço, de reconhecer um entre todos os sentimentos de antigamente: aquela melancolia especial de que te falava.

Coluna “Conversa Literária”, Manchete, 30/05/1953. Coluna “Primeiro Plano”, Diário Carioca, 31/03/1955.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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