As fantasias infantis podem ser ilimitadas, mas sempre houve distância entre tê-las e realizá-las. E não são muitas as crianças que conseguem levar a cabo ideias temerárias, em geral inspiradas nos heróis ou costumes de sua época. Paulo Mendes Campos fica no grupo dos poucos: aos onze de idade, foi o menino afortunado que, com dois amigos, executou o plano de uma aventura arrojada, vivida com a mais genuína ousadia dessa fase da vida.
Ao contrário do pai, o médico e escritor Mário Mendes Campos, a quem atribuía um único defeito, o de não ter “um mínimo de espírito de aventura”, Paulo viveu, ao longo da vida, pelo menos duas de forte repercussão: a da fuga de casa, na meninice, e a da experiência com o LSD, na idade adulta.
Ambas planejadas e contadas por ele em prosa. Em poucas palavras: a primeira aventura constou de uma fuga de Paulo com dois amigos, Aristeu e Georges. Armados do revólver que o primeiro pegou da mãe, de uma machadinha e de uma faca inglesa arranjada pelos dois companheiros, carregando mochilas recheadas de doces, queijos e conservas, saíram de casa, em Belo Horizonte, em direção ao estado do Mato Grosso para lá viver com os índios. Não passaram da Mutuca, nos arredores da capital mineira, onde as saudades da mãe já apertavam. Um lenhador chamado Cardoso os acolheu e convenceu-os a voltar para casa, não antes de ser saudado com uma salva de tiros para o alto pelos fugitivos arrependidos.
Talvez para surpresa de alguns leitores de hoje, fica-se sabendo, a partir da leitura de um manuscrito do cronista, sob a guarda do IMS, que a personagem Paulo da crônica “A fuga", publicada na revista Manchete de 1o de novembro de 1958 é, na verdade, o próprio Mendes Campos. Muitos anos depois, essa crônica seria republicada, no mesmo periódico, em 22 de agosto de 1970, com o título “Marcha para o Oeste”, e posteriormente incluída em Os bares morrem numa quarta-feira, de 1980.
A descoberta de um dos cadernos do autor, registrado no IMS sob o número 039133, permite fazer a conexão entre as crônicas e a biografia pessoal. No caderno, ele escreveu “Fugindo de casa”, texto de 25 páginas manuscritas em que é possível reconhecer o mesmo enredo das crônicas. Há ali trechos exatamente iguais aos publicados em Manchete, mas há também frases de um pré-adolescente que queria empregar as normas gramaticais recém-aprendidas no Colégio Arnaldo, onde cursava a primeira série: “os homens tirar-lhes-ão tudo” foi a forma verbal que adotou para a fala do lenhador Cardoso, personagem crucial na história.
“Fugindo de casa”, além de outras narrativas curtas, foi escrito no caderno escolar pouco depois do episódio, quando ele sofria as angústias de aluno interno do Colégio Dom Bosco, em Cachoeira do Campo, para onde a família resolveu enviá-lo depois da fuga e de ter sido reprovado na primeira série.
“Eu arranjo o cofre do Banco, roubo o revólver de mamãe e compro os alimentos na conta de papai”, garantia Paulo em “A fuga”, nos preparativos da aventura. Na versão “Marcha para o Oeste”, o cronista suaviza o verbo: em vez de roubo, opta por “Eu pego o meu cofre do banco e o revólver de mamãe”. De um modo ou de outro, a arma não era do pai, como se podia esperar, e sim da mãe, que, por sua grandeza, justifica aqui uma pequena digressão.
Na reflexão que faz em “Meditações imaginárias”, o cronista atribui a pessoas e escritores algumas características físicas ou psicológicas que identifica em si mesmo. Antes de dizer que deve ao pai “os artelhos nodosos, os teoremas abstratos do espírito, timidez diante do dinheiro”, reconhece: “A minha mãe, o manejo do revólver, o gosto do claustro, o recolhimento na hora do crepúsculo, o entendimento da passarela entre o efêmero e o símbolo”.
Mas, cisma o leitor, que mãe é essa que manejava o revólver? A resposta surge clara na crônica “Maria José”, com que Paulo Mendes Campos reverencia a figura extraordinária da mãe. Descreve-a como “terna e firme”, mas adverte que ela “nunca deixou de ter na gaveta o revólver que recebera, menina-e-moça, das mãos do pai e que empunhou no quintal noturno, perseguindo um ladrão, para espanto de meus cinco anos”. Nem mesmo ao se aproximar dos setenta anos e julgar ter atingido a humildade da velhice, Maria José deixava de lado o revólver “para a defesa dos filhos e dos netos”, continua ele na mesma crônica, recolhida em O anjo bêbado e posteriormente em Cisne de feltro.
Publicada a primeira vez em 6 de janeiro de 1968 na revista Manchete, um ano depois da morte da mãe, em “Maria José” o cronista lembra que, por delicadeza, ela não reclamava de dor quando adoeceu, o que dificultava o trabalho do médico que a acompanhava. Prostrada durante algum tempo, chegou o dia em que pediu uma dose de conhaque e, poucos minutos depois, morreu em paz, conta o filho, acrescentando que a mãe tinha Deus no coração. E encerra a crônica, republicada no Jornal do Brasil de 18 de fevereiro de 1990, assim: “Perdi quem me amava e perdoava, quem me encomendava à compaixão do Criador e me defendia contra o mundo de revólver na mão”.
Voltando à história da fuga. A ação do que o autor pré-adolescente de “Fugindo de casa” chamou inicialmente de “romance” é palpitante. Integral é a convicção com que o trio de amigos se lança à estrada, impregnado do sentimento de evasão e de liberdade, tomado pelo “idealismo ingênuo” a que Paulo Rónai se referiu no prefácio de Os meninos da rua Paulo, o clássico romance de aventura do húngaro Ferenc Molnár.
Pela quantidade de vezes que Paulo Mendes Campos se referiu ao episódio, vê-se que não subestimou a empreitada. Além das duas crônicas sobre a fuga, aqui mencionadas, ele se refere pelo menos mais três vezes ao assunto: no poema “Fragmentos em prosa”, incluído em seu livro de estreia A palavra escrita, lê-se: “Aos onze anos, armado de revólver, fugi de casa”. Em “Autobiografia”, de Hora do recreio, espécie de cronologia pessoal recolhida mais tarde em Cisne de feltro, ele escreve que em 1933: “Fujo da casa paterna, materna, fraterna, mochila nas costas, em busca dos índios de Mato Grosso; regresso ao atingir as terras da Mutuca, hoje subúrbio de Belo Horizonte”. Na crônica "Video tape da insônia”, publicada em 12 de setembro de 1970, em Manchete, e depois em Cisne de feltro, relata: “Aos onze anos, fugi de casa. Em companhia de Georges e Aristeu, demandei Goiás para viver com os índios. A primeira sede violenta. O desconhecido amedrontando e tentando. Cardoso, velho lenheiro, nos deu em sua choupana cama de palha, café com broa e conselhos mansos: ‘Acho que vocês vão dar uma estopada, meninos: o mundo é grande e mau’”.
Mas apenas a versão do caderninho mostra que, ao voltar, Paulo encontrou uma multidão de solidários e curiosos em frente à sua casa. Depois de um bom banho, foi submetido ao severo interrogatório do pai, que o obrigou a pedir perdão à mãe, ocasião em que ele certamente lhe devolveu o revólver 32.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.