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Caderno das paixões: Roberto Piva

09 de agosto de 2021

Em 1982, na praia de Cananeia, no extremo sul do litoral paulista, o poeta Roberto Piva escrevia em um de seus cadernos de notas: “Todo ecologista necessariamente terá que ser contra a raça humana. Não existe meio termo. A natureza é contrária a qualquer forma de humanismo”. 

Talvez só a intimidade que criou com as areias de São Paulo, estado onde nasceu em 1937, lhe permitisse fazer a afirmação radical. Intimidade não só com as areias, vale ressaltar, mas também com as matas em que se embrenhou em busca do contato com os interlocutores de sua predileção: os anjos e os deuses. À nota, escrita há três décadas, pode-se dizer, ele acrescentou que superpopulação, capitalismo, narcisismo e a industrialização desenfreada do planeta resultariam em deserto, escombros, uniformidade, diminuição do espaço vital e câncer. Mais lucidez é impossível.

O caderno, registrado sob o número 043226 e conservado em seu arquivo, sob a guarda do IMS, guarda registros da década de 1980, como já se disse aqui. Àquela altura, Piva era o reconhecido autor de Paranoia, livro de estreia, de 1963, que mereceu comentário na revista Action Surréaliste, dirigida por André Breton: “Paranoia est le premier livre de poésie délirante publié en brésilien”. Além de Paranoia, com que desnorteara a crítica brasileira mais conservadora, publicara Piazzas (1964), Abra os olhos & diga ah (1976), Coxas (1979) e 20 poemas com brócoli (1981).

Se sua obra poética, reunida e lançada pela Editora Globo em 2005, reflete, de modo geral, a paixão desmedida pela vida, o caderno de que se trata aqui é testemunho eloquente da intrepidez desse homem ao descobrir prazeres e sensações. Vida e obra em consonância.

Sendo Roberto Piva um poeta de apreensão declaradamente estimulada pelas drogas, das quais fazia apologia, é natural que exalte as centelhas colhidas nas praias paulistas: Boiçucanga, no município de São Sebastião, Praia do Guaiúba, no Guarujá, ou Iguape, no Vale do Ribeira, para citar três.

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"Passei o ano de 1961 fumando ópio com um garoto chinês delicioso", anota ele no caderno que mescla memórias e produção poética. Acervo Roberto Piva/ IMS

 

Aqui não é mais o andarilho da capital, cujas visões – sim, visões – expressas nos poemas de Paranoia se conjugam às fotos de Wesley Duke Lee que ilustram a edição feita pelo IMS em 2000 e reeditada em 2009, esta com prefácio de Davi Arrigucci Jr. Trata-se, nesse caderno, do caminhante do litoral que, segundo ele mesmo anuncia na contracapa, faz “diários, poesias, entrevistas, fragmentos anárquicos e ecológicos”.

É natural. Nada mais próprio de um caderno de escritor do que a fragmentação ou a mistura entre produção, poética, nesse caso, e biografia. Por isso mesmo, a reflexão inicial, a respeito da relação do homem com a natureza, é seguida do registro de pequenas epifanias, desencadeadas pela observação do mar, do sol ou das estrelas. De qualquer modo, o que ressalta nas páginas aqui publicadas é a coerência entre o que se lê nas linhas desordenadas do visitante, com sua letra trêmula, e os versos editados. Não que a poesia precise de coerência, está claro. Mas a verdade do poeta, no caso de Roberto Piva, se alardeia por meio do cotidiano registrado no caderno. Ele entregava-se com destemor, e compartilhava sua prática. O que soa como provocação origina-se das vivências que lhe saíam de forma irrefreável. Fossem na cidade, como se refletem em Paranoia, fossem na natureza, como observa além da obra poética. Era levado – mostram as anotações – a concluir o descompasso entre a vida urbana e o campo, certamente com alguma dor e não menos desprezo: “As cidades com seus intelectuais brochas, seus jornalistas lacaios e suas câmaras de tortura. Como poderemos triunfar contra este muro de determinação gélida? E aqui nesta mata à beira-mar onde o céu canta seu blue para o sol e arbustos enfezados. Meu garoto índio espreguiça e mergulha seu corpo de flor na onda encantada.”

À repulsa pela classe média e pela burguesia, com sua “formalidade, sua brochice”, escreve ele, se opunha com a descoberta da beleza do povo simples de Cambury, por exemplo, no qual descobria traços que o encantavam: “Alguns bolsões de periferia ainda continuam intactos. Avante garotos selvagens, dionisíacos, saqueadores, delinquentes, michês anárquicos e depravados. Avante com seus corados, deliciosos rostos e corpos rurais”.

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Páginas do caderno de Roberto Piva em que o poeta conta sobre conversas com José Celso Martinêz Correa sobre a montagem de As bacantes. Acervo Roberto Piva/ IMS

 

Foi o gosto por esse tipo de beleza que o levou a longas conversas com Zé Celso Martinez Corrêa sobre a montagem de As bacantes: “Dionisos tem de ser encarnado por um garoto da periferia com seu forte rosto rural”, dizia Piva, que, declara, em 1986 teve longas conversas com o diretor teatral a respeito da concepção da primeira montagem da peça de Eurípedes que estrearia em Ribeirão Preto naquele ano e faria temporada de enorme sucesso em São Paulo.

Ainda na linha de memórias do caderno, lê-se: “Passei o ano de 1961 fumando ópio com um garoto chinês delicioso”, relembra, sem deixar de mencionar nomes de músicos como Chet Baker, Miles Davis e outros, para indicar a relação da música com o momento vivido. Ou com o momento mais recente:

Jairo Ferreira e eu entramos em delírio naquela manhã em Icapara. [...] O snr. Luís, que é motorista da CMTC aposentado, nos apresenta sua filha, genro, neto, filho de 17 anos, esposa e seu amante, um caiçarinha travesti de 16 anos, vestido longo de chita, parecendo uma cigana, lindo de morrer.

Da Ilhabela, no verão de 1982, dizia: “A mata está calma, transpirando oxigênio epifânico”. Ou “Entrar no Santuário, conhecer o Porre integral. O resto é covardia” – eram suas reflexões diante da experiência. Experiência que podia ser também literária, é o que atestam as notas decorrentes de leituras como a de Sexualidade e poder, de Philippe Sollers, de livros de Patti Smith, Mircea Eliade, dentre tantas outros.

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“Hic habitat felicitas”, um dos poucos poemas rabiscados no caderno, publicado posteriormente em Ciclones (1977). Acervo Roberto Piva/ IMS

 

Mais de memórias do que de exercício de poesia, o caderno não deixa de conter alguns de seus poemas. É na Ilha Comprida, em 1983, que cria “Hic habitat felicitas”, tal qual seria publicado em Ciclones (1997), inclusive com a letra minúscula de Fascinus, o deus romano da fecundidade:

fastos & nefastos
deus fascinus
na soleira da porta
aponta
a glande rosada
pro seu olho xereta

Tudo o que ele queria era a confirmação da Eternidade do Instante. E para isso não se furtou a avaliar os efeitos da variedade de drogas que consumiu – é o que se lê nas págs. 38 e 39, quando sistematiza o seu aprendizado com a mescalina, o ópio, o LSD e a maconha.

A leitura do caderno de Roberto Piva mostra que não há distância entre o que viveu e as afirmações que divulgou em entrevistas, evidência de que sua conhecida frase “só acredito em poesia experimental que tenha vida experimental” era verdadeiríssima. “Nunca levei a sério nada a não ser o instante. Minha pátria é onde não estou”, disse, e o caderno 043226 é testemunho da veracidade dessa afirmação.

Rosto de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, visto de perfil

Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.

Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.

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