Roberto Piva não deixou de ser poeta em nenhum momento que, como viajante, fez travessias, sobretudo pelo litoral paulista. À vasta exploração das areias e matas somava experiências, as mais diversas, com os habitantes locais, além da leitura de livros que carregava e enriqueciam as descobertas São Paulo adentro.
Sua trajetória editorial começou a se definir quando Massao Ohno (1936-2010), filho de imigrantes japoneses e considerado o maior editor independente do Brasil, o incluiu na Antologia dos novíssimos, de 1961. Com elegância e ousadia, Ohno se interessou vivamente pela poesia daqueles jovens, donos de uma irreverência nova, palpitante, e que ficaria conhecida como Geração 60. Três anos depois da estreia na Antologia, Piva publicaria Piazzas, também pela Massao Ohno Editora, ao lado de Anotações para um apocalipse, de seu amigo Claudio Willer. Com esses dois títulos dava-se início à Coleção Maldoror, que não pôde ir adiante por falta de verba.
Nem por isso Piva deixou de publicar, tampouco de entregar-se ao descomedimento que o caracterizava, indissociável da sua poesia – mostram os cadernos registrados sob os números 043228 e 043229 de seu arquivo, sob a guarda do IMS. O arrojo com que ele se jogava às experiências mais profundas, o desregramento com que se lançava ao desconhecido, tudo isso se reflete nos versos de seu primeiro livro, Paranoia, de 1963. Davi Arrigucci Jr., autor do prefácio à edição de 2009, feita pelo Instituto Moreira Salles, ressalta que esse é um livro sobre São Paulo e chama atenção para o impulso de provocação dominante na poesia de Roberto Piva.
A marca, portanto, é evidente desde o primeiro livro. Quem lê os cadernos de notas do poeta no final da década de 1980 e início da de 1990 constata que seus interesses, na década de 1960, explícitos em Paranoia, permanecem: o êxtase, as alucinações, o sexo. O que as notas revelam é a mudança de cenário da cidade para o litoral e a montanha.
“A represa é um olho de quietude líquida. Evoé pai Gavião”, registra ele, com a letra irregular de quem está mesmo ancorado no provisório, quando estava na Represa de Mairiporã, em 1988, depois de se sentir saudado com o grito do pássaro sobre a sua cabeça. A natural integração com a natureza, porém, não o afastava das leituras, fossem de poesia, crítica, ou ainda de estudos diversos, inclusive aqueles sobre fenômenos sobrenaturais. Nessa época, ele lia Vents, de 1946, do poeta francês Saint-John Perse, sobre os ventos que, no pós-guerra, sopraram no homem. Do verso “Comme un grand arbre mendiant qui a fripé son patrimoine, face brûlée d’amour et de violence où le désir encore va chanter”, Piva anota a partir de “face brûlée” (rosto queimado, bronzeado), para evocar uma de suas aventuras sexuais. Poesia e vida juntas, sempre.
Em 1988, quando se aproximava o fim do que especialistas chamaram a “década perdida” no Brasil, com a inflação e o desemprego afundando o país em situação dramática, houve lugar, como se sabe, para uma esperança, trazida pela promulgação da Constituição, em outubro. Nesse contexto, Piva alterna registros das orgias que vivenciava e notas sobre a situação nacional: “A verdadeira desgraça do país é a lei da inércia aplicada ao pensamento”.
Atraído por temas diversos, Piva se interessava por tudo o que fosse ligado ao sobrenatural, revela o caderno 043229. Desde, por exemplo, a leitura de The Book of Evil Spirits de L.W. de Lawrence, sobre magia negra, ao Tratado de História das Religiões, do filósofo e historiador romeno Mircea Eliade, que estuda os fenômenos religiosos, sobretudo a respeito das manifestações do sagrado ou sobre a relação entre o sagrado e o humano. Piva tentava estabelecer paralelos entre as investigações da natureza que ele mesmo fazia e o pensamento de Eliade, de quem anotou: “O que estava vazio de substância ressarcia-se; o que estava fragmentado reintegra-se na unidade; o que estava isolado funde-se na grande matriz universal. A orgia faz circular a energia vital e sagrada”.
Há ainda, nas suas notas, evidências de que ele consultava o tarô (imagem no alto da página): “Previsões para 1990: ‘Ano de 90 será regido pelo Sol’”. Não ficaram de fora as coincidências, devidamente anotadas em março de 1990, em Iguape: “Ônibus dia 14 para Iguape poltrona n. 11. No hotel, fico no quarto n. 11. Na volta, a poltrona é o número 29 cuja soma o resultado é 11”. Tampouco faltou uma receita curiosa (reprodução acima): “Vó Francisca: 1 vela branca, 1 copo de água do filtro e depois jogar por cima do ombro esquerdo dentro do chuveiro”.
Não custava nada a Roberto Piva pular de Vó Francisca para o poeta inglês William Blake. Em dezembro de 1993, sempre contrário às convenções sociais, lembrava, em seus apontamentos, a profecia de Blake, ainda no século XVIII, segundo a qual “a ovelha estava comendo o verde da Inglaterra para o implante da sociedade industrial”. Referia-se ao poema “From the Preface to Milton”, em que o inglês imagina a presença de Jesus nas montanhas verdes da Inglaterra, onde o Cordeiro de Deus teria visto o agradável pasto: “And did those feet in ancient time/ Walk upon England’s mountains Green?/ And was the holy Lamb of God/ On England’s pleasant pastures seen?”. Promete, na estrofe final, não descansar até que Jerusalém seja construída na agradável e verde terra inglesa. “I Will not cease from mental fight,/ Nor shall my sword sleep in my hand,/ Till we have built Jerusalem,/ In England’s Green and a pleasant land”.
Instigante é conhecer a inversão do pensamento de Roberto Piva ao tratar dos avanços da sociedade. Para ele, a alteração da consciência, de modo geral atribuída ao efeito de drogas, se dá, na verdade, com a razão, o pensamento lógico. Segundo ele, é a civilização que, ao estabelecer uma busca de comportamento padronizado, perturba a consciência e a altera: “Na sociedade industrial, as pessoas mumificadas por este estado alterado da consciência chamado racionalismo”.
Ler os cadernos de Roberto Piva é entrar numa via de acesso à sua poesia; aos versos de Piazzas (1964), Abra os olhos & diga ah (1976), Coxas (1979) e 20 poemas com brócoli (1981). Sua obra é a constatação da nota em que ele cita o poeta francês Antonin Artaud: “A poesia deve fazer um giro de 180, um verdadeiro turning point, se quiser cair outra vez na vida”, e complementava: “saltar fora dos livros e deixar a realidade em completa desordem”.
Elvia Bezerra é pesquisadora de literatura brasileira e colaboradora no IMS.
Os mais de cem cadernos de escritores guardados no acervo de Literatura do Instituto Moreira Salles mostram o quanto esses itens, cada vez mais raros nos nossos dias, serviram no passado de laboratório de criação literária. Esta série em construção revela a singularidade desses documentos e a natureza de seus autores. Confira a coleção de posts elaborados a partir deste material cuidado e catalogado pelo IMS.