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Campeões do mundo

02 de julho de 2018

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, escritos a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Aproveitando o clima de Copa, selecionamos uma imagem de Marcel Gautherot para inspirar o escritor Flávio Carneiro. Sem bola à vista, a simples evocação do jogo resultou em “Campeões do mundo”, que revira com humor um velho trauma futebolístico.

Jogo de futebol, Londrina, Paraná, c. 1957. Foto de Marcel Gautherot / Acervo IMS

Você queria mesmo era o autógrafo do Obdulio Varela na camisa azul, a valorosa celeste, mas sua namorada, arrumadeira do Hotel Paysandu, no Flamengo, onde a equipe uruguaia estava hospedada, sua namorada só conseguiu as assinaturas do Schiaffino e do Ghiggia. Obdulio não quis autografar, era difícil o Obdulio, sisudo capitão, não gostava de dar entrevistas, nem de ser fotografado, ficava lá, na dele, a fera uruguaia.

Não havia nenhum repórter naquele início de tarde, quando você chegou ao hotel para dar um beijo na sua namorada e pegar a camisa. Você tinha ouvido no rádio que o Juan Lopez, técnico do Uruguai, dera folga aos jogadores. Por isso ninguém da imprensa estava no hotel, e mesmo que lá estivessem os heroicos uruguaios, que chegaram aos trancos e barrancos à final contra os donos da casa, estes sim francos favoritos, favoritíssimos, mesmo que estivessem no hotel àquela hora da tarde, recolhidos nos seus quartos ou passando o tempo na recepção, lendo os jornais, quem sabe, ainda assim era pouco provável que houvesse repórteres.

Estavam todos na concentração do Brasil, invadiram a concentração do Brasil em meio a uma multidão de políticos, buscando fotos com as estrelas da companhia, naquele 15 de julho de 1950, véspera do grande dia!

É, só que eles não saíram coisíssima nenhuma, estão lá no restaurante, acabei de ver, está todo mundo aí, sua namorada confidenciou, como se revelasse a você um segredo de estado, o que talvez fosse mesmo, um segredo secretíssimo. O Juan Lopez dera aquela declaração, um dia antes, de que a véspera da grande final seria de folga, para os atletas relaxarem um pouco, seria bom andarem pela cidade conhecendo seus pontos turísticos, por que não? Lorota, conversa fiada, ninguém saiu do hotel naquele dia, nem para dar um pulinho ali na praia, sua namorada contou que desde cedo percebeu alguma coisa diferente, os uruguaios estavam tensos, quase não falavam, dava para ver no rosto deles que estavam concentrados, alguma coisa iria acontecer naquele dia, alguma coisa que a imprensa não poderia saber, ninguém poderia saber.

Você estava ainda na cozinha, tomando um café fresquinho que a cozinheira, amiga da sua namorada, acabara de passar, você viu pela porta da cozinha quando os uruguaios, vestindo agasalhos, passaram pela recepção, vazia àquela hora, só o recepcionista mesmo, atrás do balcão. Você ouviu o barulho das travas das chuteiras, o barulho no piso de táboas corridas ressoando até os seus ouvidos.  Mas que diabos estariam fazendo aqueles uruguaios andando de chuteiras pelo hotel, na véspera da final contra o Brasil?

Você viu quando eles saíram pela porta dos fundos e entraram rapidamente no ônibus, sem olhar para os lados, cobrindo o rosto com o capuz, como se não quisessem ser identificados, você achou graça, como queriam passar despercebidos andando em bando, de uniforme, todos metidos naqueles agasalhos, nem frio estava fazendo, malucos!

Não precisava ser muito esperto para perceber que alguma coisa estranha estava acontecendo, que alguma coisa importante iria acontecer, você não sabia o quê mas sabia que estava presenciando algo muito, muito misterioso. Então você deu um beijo na sua namorada, prometendo voltar no final da tarde para irem ao cinema, estava passando Escravos da Ambição, com o Glenn Ford. Sua namorada queria muito ir, ela gosta de faroeste, fazer o quê? Deve ser a única mulher do mundo que gosta de faroeste, você nem liga, não é tão chegado assim a cinema, nem sabe em qual está passando, Plaza, Pathé, Odeon, tanto faz. Você desconfia de que, na verdade, ela quer é ver o Glenn Ford, gosta de faroeste mas gosta mais ainda do galã americano, tudo bem, foi um acordo entre vocês, ela conseguiria a camisa do Uruguai, autografada, e você a levaria ao cinema. Você deu beijo na sua namorada e saiu ligeiro, na velha bicicleta.

Você não estava preparado para pedalar muito, vestia sua melhor calça, a preta, e uma camisa branca, nova também, os sapatos engraxados, o chapéu feito sob medida, você estava nos trinques, era roupa de ir ao cinema com a namorada, não era roupa de andar de bicicleta no sol quente, seguindo um ônibus cheio de uruguaios, então era melhor que o destino não fosse muito distante. Mas o danado pegou o caminho para a zona norte, e quando você se deu conta já suava em bicas, era preciso pedalar mais rápido do que estava acostumado e a certa altura você se pegou pensando que droga estou fazendo? Isso é lá coisa de gente normal? Você é mais doido que os uruguaios, você pensou, sem deixar de pedalar.

Quando avistou o Maracanã você entendeu tudo, um clarão iluminou sua mente naquela tarde ensolarada, você entendeu tudo, os caras iam treinar escondido no Maracanã, na véspera do jogo. Então era essa a resposta ao grande mistério, a decifração do enigma. Mal passou pela sua cabeça que, para isso, eles teriam que ter reservado o estádio antes, duvido que a CBD permitisse uma coisa dessas, treinar no maior do mundo na véspera da grande final, mas foi o que você deduziu, só podia ser isso, foi o que você deduziu quando o ônibus contornou o estádio.

O problema é que ele não entrou em porcaria de estádio nenhum, e você sentiu a panturrilha doer, só faltava essa, ter um troço qualquer, um piripaque na perna e não conseguir mais pedalar, e aí você não apenas perderia o ônibus dos caras, sem saber jamais qual seria o final daquela história, horrível isso, não saber o final, não, você, além disso, não conseguiria voltar para o hotel, onde sua namorada ficaria esperando, preocupada, o que aconteceu com ele, gente? Mas você resistiu, a outra panturrilha, da perna esquerda, deu uma fisgada também,  puta merda!, você se pegou xingando sozinho, no meio daquela rua que não conhecia, sabia que ali era Aldeia Campista, você conhecia o bairro, já tinha ido lá uma vez, mas aquela rua não. O ônibus seguiu por mais alguns minutos e finalmente parou.

Não acredito, você disse, encostando a bicicleta no muro de madeira, bem judiado. Você viu quando todos desceram do ônibus, agora já sem agasalho, só chuteiras, meiões, camisas, você viu quando o técnico bateu com força no portão, e logo em seguida você viu um sujeito abrindo o portão e todo mundo passando por ele, apressados os uruguaios, passaram todos e o sujeito trancou de volta, não sem antes olhar para você com cara de poucos amigos e fazer um gesto que não deixava dúvidas: cai fora, rapaz, chispa daqui!

Não, você não ia cair fora coisíssima nenhuma, imagina. Logo adiante você viu outros homens, olhando pelas frestas no muro, e caminhou até onde eles estavam, achando logo uma bem no meio, a fresta que te abriu as portas da revelação. Você finalmente entendeu, não estava totalmente errado quando conjecturou, no momento em que vocês passaram pelo Maracanã, não estava errado na sua suposição de que os caras estavam indo treinar, escondidos de todo mundo. Só não seria no Maracanã, óbvio, aquele era o lugar mais visado do país naqueles dias, o palco da grande final da Copa, teria que ser muito burro para se esconder justo no Maracanã, não, o destino era outro, o treino seria naquele campinho de grama horrorosa, mais capim do que grama, e cheio de falhas. Era um campo oficial, dava para ver que tinha as medidas de um campo oficial, ou quase isso, mas era campo de várzea, de peladeiros, os próprios uruguaios levaram as redes dos gols, colocaram as redes ali na hora mesmo, você espiando tudo pelo buraco no muro.

Você viu quando o Juan Lopez, terminado o aquecimento, reuniu todos no meio do campo e ficou lá, dando instruções que você não conseguia ouvir, claro, muito longe, mas dava para ver que ele dava instruções, e logo você entendeu que o treino não seria um coletivo, aliás nem dava para fazer um coletivo, não teria quórum, não havia vinte e dois uruguaios para montar dois times, dava talvez um time e meio.

O técnico dividiu o grupo em dois, cada um numa metade do campo. Numa delas, alguns jogadores ficaram batendo bola, na outra ele ensaiava uma jogada que começava com o Obdulio, grande Obdulio, que saía trocando passes com Rodríguez e Julio Perez, enquanto o Ghiggia corria pela lateral direita e o Schiaffino em linha reta, pelo meio. Então Obdulio lançava o Ghiggia, que levava a bola até a linha de fundo e cruzava para trás, bem nos pés do Schiaffino, finalizando de cara para o gol. Bela jogada, você via pelo buraco, pela fresta no muro, você viu quantas vezes eles repetiram, sempre terminando do mesmo jeito, cruzamento do Ghiggia e chute certeiro do Schiaffino, craque do time.

Até que, numa dessas, o Ghiggia não cruzou. Foi tudo como das outras vezes, começando com o Obdulio, a troca de passes com Perez e Rodríguez, o lançamento na direita, para a velocidade do Ghiggia, só que daquela vez ele não cruzou para trás, o Schiaffino se posicionou e ficou ali, esperando o passe, mas o Ghiggia não cruzou, chutou direto. O Máspoli, o goleiro deles, fez o movimento para tentar cortar o passe, o mesmo movimento das outras vezes, mas o Ghiggia chutou direto e matou o Máspoli, a bola passando perto da sua perna esquerda, entre sua perna e a trave, estufando as redes novinhas que eles tinham trazido.

Ficou todo mundo parado, sem entender. O Ghiggia riu, tinha feito aquilo de brincadeira, ficou lá rindo sozinho, debochando do Máspoli, que depois achou graça também, todo mundo começou a rir, até o técnico, estavam de bom humor os uruguaios, todos rindo da malandragem do Ghiggia, da peraltice do ponta-direita, veloz ponta-direita, todos menos ele, o capitão.

Obdulio não riu. Caminhou devagar, elegante, ereto, caminhou até o Ghiggia e falou alguma coisa no ouvido dele.

Você jamais saberá o que o Obdulio falou no ouvido do Ghiggia, e nem poderia perguntar a ele depois do treino, se tivesse coragem suficiente, você não poderia porque estava ficando tarde. Você parou de bisbilhotar o treino dos uruguaios para perguntar as horas a um colega de muro, seu colega de bisbilhotice. Ele disse as horas e você se assustou, precisava voltar logo para o hotel ou perderia a sessão de cinema, Escravos da Ambição esperava você e sua namorada, e a última coisa que você queria era magoar sua namorada, ainda mais depois que ela conseguiu a camisa azul com autógrafos do Ghiggia e do Schiaffino, então você fez uma massagem rápida nas panturrilhas, alongou um pouco, subiu na bicicleta velha de guerra e refez o caminho de volta.

Você comprou os bilhetes e enquanto esperava o início da sessão contou tudo para a sua namorada, pedindo desculpas por estar com cheiro de suor, você contou da quase viagem de bicicleta até a Aldeia Campista, do treino secreto do Uruguai, e quando contou da jogada do Ghiggia, do improviso do Ghiggia, deixando o pobre Máspoli no chinelo, quando contou isso veio um frio na barriga, você não entendeu por que aquele friozinho na barriga, um mau pressentimento, sei lá, o certo é que uma ideia ruim lhe passou pela cabeça e você perguntou para sua namorada: será que ele teria coragem de fazer isso?

Ele quem? Fazer o quê? O Ghiggia, será que se fosse num jogo de verdade, numa final de Copa, contra o Brasil, será que ele teria coragem de chutar direto, quase sem ângulo? E ela, depois de pensar um pouco: claro que não, ele não seria louco, ia fazer o feijão com arroz.

A resposta acalmou você, sua namorada tinha razão, na verdade ela não entendia muito de futebol mas naquele momento tinha razão, os caras estavam treinando a jogada, deveriam estar treinando até agora, quem sabe, a jogada certa, eficaz, era muito mais fácil dar certo assim, com o craque do time, o Schiaffino, finalizando a gol. Claro, o Ghiggia não faria nenhuma maluquice se fosse no jogo, treino é treino, jogo é jogo, não, você poderia assistir tranquilo o filme com sua namorada, amanhã você seria, você, ela, todos os brasileiros, amanhã seríamos campeões do mundo.

Flávio Carneiro é escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ. Escreveu 16 livros – entre romances, coletâneas de contos e crônicas, ensaios – e dois roteiros para cinema. É autor da Trilogia do Rio de Janeiro, composta pelos romances O Campeonato, A Confissão e A Ilha. Seu livro mais recente é um policial: Um romance perigoso. Parte de sua obra foi publicada em outros países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Portugal, Alemanha, Colômbia e México. www.flaviocarneiro.com.br