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Canudos: uma obsessão

13 de janeiro de 2016

Na tarde do dia 16 de setembro de 1897, Euclides da Cunha desembarcava em Canudos, povoado no interior da Bahia que ousou pôr em prática a utopia libertadora de Antônio Conselheiro. Ali, diante da brutalidade com que as tropas do governo atacaram e, por fim, dizimaram a resistente comunidade, o engenheiro e jornalista, então correspondente de O Estado de S. Paulo, encontraria seu destino de escritor.

 

Euclides da Cunha em 1902, ano de lançamento de Os sertões

 

A obra de Euclides, que permanece tão viva e surpreendente hoje quanto era no período de sua publicação, entusiasmou dois críticos a produzirem longos e complexos estudos sobre Os sertões. O trabalho do pesquisador Olímpio de Souza Andrade e do professor Roberto Ventura integram o acervo do IMS, e é investigando esses arquivos que constatamos o fervor de Euclides em corrigir sua obra-prima, de próprio punho, até mesmo em um bom número de exemplares já impressos mas ainda na gráfica. Constituem hoje a delícia dos bibliófilos.

Olímpio começou a se dedicar ao estudo de Os sertões desde jovem, debruçando-se sobre a obra ao longo dos seus 66 anos de vida. O seu premiado História e interpretação de Os sertões, de 1960, é indispensável aos estudiosos da guerra de Canudos. Olímpio lançou ainda muitos títulos sobre o tema, entre os quais a Caderneta de campo, com a transcrição integral e comentada da caderneta produzida por Euclides durante a sua permanência em Canudos. O documento original, sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico (IHGB), é considerado a gênese de Os sertões. O pesquisador deixaria inacabado seu último livro, Os sertões depois de Euclides.

Roberto Ventura também deixou inconcluso o grande projeto literário de sua vida: Euclides da Cunha: uma biografia seria o título do livro a que se dedicou com a devoção conhecida de todos os que o cercavam e cuja redação foi interrompida quando sofreu um acidente de carro fatal no dia 13 de agosto de 2002 ao voltar da Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo. Curiosamente, morreu no dia 14 – apenas um dia antes da data de morte do próprio Euclides. O que ficou desse projeto, localizado pela viúva, está em Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha, de 2003, organizado por Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.

Na biblioteca de Ventura encontra-se, restaurada e disponível para consulta, a 1ª edição de Os sertões, publicada em 1902 pela Laemmert & Editores, do Rio de Janeiro, sem antes deixar de apavorar seu autor pela quantidade de erros que continha. Sobre isso, queixou-se ele ao amigo Escobar em carta antológica de 19 de outubro de 1902:

Tenho passado mal. Chamaste-me a atenção para vários descuidos dos meus Sertões; fui lê-lo com mais cuidado — e fiquei apavorado! Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente… Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro?

Segundo a estudiosa Walnice Nogueira Galvão, “vai nessa afirmação muito do exagero de autor estreante, além do mais dotado de extraordinário animus corrigendi, patente nas exaustivas emendas que efetuou em todas as edições de sua obra”. Na edição crítica que organizou em 1998 pela Ática, a especialista ainda afirma: “Há tempos corre a versão de que Euclides, exasperado pelo excesso de erros gráficos de seu primeiro rebento livresco teria, pessoalmente e à mão, corrigido exemplar por exemplar da 1ª edição”.

A versão foi acolhida por Olímpio de Sousa Andrade e Roberto Ventura, mas não há consenso em relação aos números: enquanto para Olímpio teriam sido feitas 80 emendas em 1.000 exemplares, Ventura, na minuciosa cronologia que preparou para os Cadernos de Literatura Brasileira, fala em 37 correções em 1.200 exemplares.

Apesar da discordância, que se deve à ausência de dados exatos a respeito da primeira tiragem de Os sertões, o fato é que todos os 11 exemplares da 1ª edição verificados por Walnice contêm emendas feitas à mão, assim como impressas. E é isso também que se percebe no exemplar da biblioteca de Roberto Ventura, que se encaixa na terceira categoria criada pela estudiosa: “c) exemplares com vírgulas à mão, em forma de gancho (como em nosso exemplar de trabalho), enquanto ss e o são impressos”.

Mesmo com essas alterações, nenhuma de grande porte, como explica Walnice, já que não há eliminação, acréscimo ou deslocamento de capítulo nem de parágrafo, a primeira edição foi publicada com uma “Corrigenda” ao final, substituída na edição seguinte por “Notas à 2ª edição”. Nelas, Euclides responde, sem nomear seus interlocutores, às questões de botânica, geologia, etnologia e vocabulário abordadas pelo crítico José de Campos Novais e pelo capitão Moreira Guimarães em artigos publicados pouco tempo depois do lançamento da obra.

A despeito da preocupação de Euclides, a 1ª edição do livro, ilustrada com desenhos de paisagens, mapas geológicos, botânicos e geográficos da região do conflito, além de fotografias de Flávio de Barros, fez um grande sucesso e se esgotou em pouco mais de dois meses. Com isso, a 2ª edição saiu no ano seguinte, em 1903, e a 3ª, última que Euclides lançou em vida, em 1905, todas pela Laemmert. Na 5ª edição, organizada por Afrânio Peixoto e publicada pela Francisco Alves, que adquirira os direitos após a morte do autor e a falência da primeira editora, foram incorporadas ainda cerca de 2.600 correções, de acordo com as emendas transcritas pelo euclidiano Fernando Nery de um exemplar da 3ª edição minuciosamente revisado por Euclides e posteriormente desaparecido.

É claro, depois destas, muitas outras edições de Os sertões vieram à luz, confirmando a monumentalidade da obra e de seu autor, cedo alçados ao topo do cânone brasileiro.

 

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