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Cartas de estimação de Carlos Drummond de Andrade

26 de agosto de 2014

São apenas dois bilhetes – curtos, um tanto enigmáticos. Carlos Drummond de Andrade envia a Decio de Almeida Prado um poema, depois mais dois. Não nos diz quais são eles. Decio sabe. Eles vêm anexos às cartas. Nós não sabemos. As mensagens, sucintas, dizem pouco. No entanto, a partir delas podemos desvendar importantes detalhes de nossa vida intelectual e literária.

É preciso seguir as pistas que nos oferecem os bilhetes. Há várias apesar de não serem sempre óbvias. Começo a partir do evidente. Mais de dois anos se passaram entre a redação de uma e outra mensagem. A primeira está datilografada; a segunda, manuscrita. No texto de abril de 1957, os tipos da máquina, o formato do papel, a linguagem formal, tudo marca a distância respeitosa entre o escritor mineiro e o diretor do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. O tempo parece ter feito o poeta, conhecido por sua timidez, superar a reserva. Redigido a mão em um pequeno pedaço de papel, o bilhete de 1959 talvez tenha merecido menos tempo e atenção do escritor. A linguagem afetuosa adotada demonstra que não se trata de desleixo, mas da confiança de quem já não escreve ao “prezado Decio de Almeida Prado” e sim a um companheiro tido por “meu caro”. Parece pouco, possivelmente apenas uma nova expressão protocolar. Entretanto, esse possessivo carinhoso – “meu” – pode trazer em si o resultado das trocas entre o intelectual e o poeta.

 

Carta de Carlos Drummond de Andrade para Decio de Almeida Prado, 3 de fevereiro de 1957. Arquivo Decio de Almeida Prado / Acervo IMS.

 

Busco no acervo do Estadão as publicações de Drummond no Suplemento quando Decio foi seu diretor, entre 1956 e 1967. Sete dos 23 poemas de A vida passada a limpo, publicado em 1959, estamparam as páginas do jornal, um único antes daquele enviado no bilhete escrito em 1957. Mais outros 16 viriam à luz e depois seriam incluídos nas reedições de Viola de bolso e em Lição de coisas e A falta que ama. A variedade nos faz lembrar a ampla participação de Drummond na imprensa, não só como o cronista que foi por décadas, mas também como o poeta a divulgar seus versos em jornais antes das edições em livro. A grande quantidade de poemas também nos leva a imaginar que podemos encontrar no acervo de Decio de Almeida Prado muitas outras cartas com alguns desses poemas e muitos e muitos outros fios que poderíamos seguir. Mas já temos o suficiente nos dois bilhetes aqui expostos.

Avanço. Volto aos versos de Drummond e lembro que aquela “estima de sempre”, registrada na mensagem de 1959 a Decio, remete à importante função que as cartas tiveram para o poeta. A correspondência primeiro ajudou o rapaz isolado em Minas e depois o migrante mineiro na então capital do país a criar e manter fortes amizades. A correspondência permitiu, além disso, que o escritor enriquecesse suas ideias artísticas ao se comunicar com autores de outros estados. O maior exemplo disso é a correspondência trocada com Mário de Andrade, a quem Drummond conheceu sobretudo por cartas e com quem formou amizade “numa base de literatura”. No poeta mais velho ele também encontrou “o companheiro e estímulo de outros homens desnorteados ou frágeis”, como via a si mesmo em sua juventude. Outro exemplo tocante é encontrado no diário depois publicado em O observador no escritório. Nas “Cartas do velho”, relidas na maturidade, o escritor sentia “melhor do que nunca”, a “forte individualidade” do pai morto há muitos anos.

 

Carta de Carlos Drummond de Andrade para Decio de Almeida Prado, 21 de julho de 1958. Arquivo Decio de Almeida Prado / Acervo IMS.

 

Em seus versos, a correspondência também teve papel de destaque. Poucos poetas brasileiros aproveitaram tanto o gênero epistolar em sua obra: são a “Carta a Stalingrado” e o “Telegrama de Moscou”, de A rosa do povo, a “Carta”, de Claro enigma, e depois o poema de mesmo nome em Lição de coisas, os versos “A Antônio Camilo de Oliveira” e “A Valdemar Cavalcanti”, em Viola de bolso, a “Epístola”, de Versiprosa, a carta “só pensada” de “Terceiro dia”, publicado em Boitempo, o “Postal para Catherine” e o “Ultratelex para São Francisco”, de Discurso de primavera. Nesses poemas, a correspondência simboliza o desejo de o eu gauche, à margem, comunicar-se com os outros homens.

Os bilhetes enviados a Decio de Almeida Prado não chegam a expor a densidade afetiva explorada nos versos de Drummond. Contudo, chama atenção a grande confiança demonstrada por ele ao deixar que Decio decidisse quais expressões seriam mais adequadas aos poemas publicados no jornal. E isso mesmo no bilhete mais cerimonioso, o de 1957. Surgem daí novos fios, que nos conduzem a outras veredas da nossa vida literária. O primeiro deles está relacionado à proeminência de Decio de Almeida Prado. Um dos nomes mais importantes do teatro no Brasil, ele foi indicado por ninguém menos que Antonio Candido para dirigir o Suplemento Literário idealizado por nosso crítico maior. Essa escolha revela muito sobre a amplitude dos conhecimentos de Decio, não restritos ao teatro. Ao legar ao diretor do Suplemento a decisão sobre a versão final de seus textos, Drummond reconhecia a capacidade intelectual inegável de seu interlocutor. E fazia isso com a elegância que lhe era própria. Se a versão final do poema enviado em 1957 já estava definida, Carlos Drummond de Andrade evitava excluir Decio do processo de produção de sua nova coletânea de versos: diz “em livro a gente restabelece a palavra”, muito embora o crítico tivesse pouca participação na composição do volume de poemas a ser lançado. Já estamos puxando novo fio, o qual nos traz de volta ao poeta.

 

Bilhete de Carlos Drummond de Andrade para Decio de Almeida Prado, 22 de setembro de 1959. Arquivo Decio de Almeida Prado / Acervo IMS.

 

O mais importante deles está relacionado ao receio por Drummond de que expressões, mesmo elevadas, como “copular” ou “coitos”, poderiam chocar o público por serem relativos ao ato sexual. Aos olhos de um leitor de hoje a suspeita pode parecer estranha, ainda mais quando descobrimos que os poemas enviados por ele nada têm de eróticos. O primeiro é “Especulações em torno da palavra homem”, divulgado no jornal em 27 de abril de 1957. Essencialmente interrogativo, o poema de cunho filosófico indaga “que coisa é homem”. Entre as diversas perguntas está esta: “Apenas deitar,/ copular, à espera/ de que do abdômen// brote a flor do homem?”. No jornal, como indicado, lemos “enlaçar”. Os outros poemas, publicados em 10 de outubro de 1959, são “Ciência” e “Os materiais da vida”. Aquele apresenta o novo olhar sobre a vida adquirido com a passagem do tempo. Este combina neologismos com signos referentes a marcas de fábricas para expressar a intromissão do comércio no amor. Na versão divulgada em livro, essa invasão é mais ampla: vai até os “coitos”, substituídos no jornal por “beijos”.

O que nos dizem essas substituições? Talvez revelem sobretudo a moralidade estrita da época, a qual levaria as expressões mais chocantes a serem reservadas para o público, menos amplo, dos livros. As dúvidas do autor talvez nos digam ainda mais, todavia. A hesitação a respeito de certas palavras manifesta um importante e pouco comentado interdito autoimposto pelo poeta, que evitou – mesmo quando jovem vanguardista – chocar os leitores com expressões que remetessem aos órgãos genitais ou abordassem de modo direto o ato sexual. Por conter o palavrão “cu”, o poema “Ouro Preto”, elogiado nos anos 1920 por Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade, nunca foi editado em livro. Devido ao medo de chocar os leitores com seus poemas eróticos, o poeta teria os mantido inéditos durante décadas, segundo revelaria em suas entrevistas dos anos 1970 e 1980.

O que pensar de tal reserva vinda de um poeta que enfrentou os conservadores em versos tidos por escandalosos como os de “No meio do caminho”? Os pequenos bilhetes não nos permitiriam responder a essa questão. Porém, já me parece o bastante que façam com que elas sejam levantadas. Certamente há outras interrogações a serem feitas por novos leitores. Se essas cartas pouco dizem, muito revelam.

Mariana Quadros é professora do Colégio Pedro II e doutora em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde defendeu a tese “Carlos Drummond de Andrade: Nenhum canto radioso?”.

 

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