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Chiquinha bacana

11 de fevereiro de 2020
Preta Gil (foto de Felipe Panfili)

 

Uma das mais populares músicas de todos os carnavais, "Ó abre-alas", composta em 1899 por Chiquinha Gonzaga (1847-1935), tem a marca do pioneirismo, não importa sob que ângulo for analisada. É considerada a primeira música brasileira de carnaval,  tendo também iniciado um gênero, a marcha-rancho, que se consolidaria nas décadas seguintes; foi composta por uma mulher, algo muito raro então; e sua autora tornou-se conhecida não só pela grande obra que deixou, mas por ter desafiado em várias frentes os padrões de comportamento da época. Não à toa, ao escolher o tema do desfile de 2020 do Bloco da Preta, Mulheres que inspiram, a cantora Preta Gil não teve dúvida em eleger "Ó abre alas" como sua canção-símbolo, a que promete arrastar multidões pelas ruas do Rio (dia 16/2), de Salvador (21/2) e São Paulo (1/3). Preta gravou no fim de janeiro, num estúdio em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, uma nova versão da música, cuja partitura original, assim como a de praticamente toda a produção de Chiquinha, encontra-se sob a guarda do Instituto Moreira Salles. Ela explica:

"Chiquinha não poderia faltar. É uma 'mulher de primeira'", define Preta, corroborando o caráter vanguardista de sua homenageada: foi a primeira compositora popular brasileira, primeira a se importar com os direitos autorais dos compositores ao lutar pela criação da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, da qual foi, em 1917, uma das fundadoras), pioneira ao defender  e popularizar a música popular brasileira. "Chiquinha rompeu padrões ao se separar e casar algumas vezes, viver de música e ultrapassar os limites impostos às mulheres de sua época", completa Preta, que convidou representantes dos blocos de carnaval do Rio  liderados por mulheres para se juntar a ela neste tributo.

O acervo de Chiquinha Gonzaga está desde 2005 sob a guarda do IMS, depois de um acordo firmado com a SBAT, onde se encontrava até então.  "Estima-se que a Chiquinha tenha cerca de 260 composições, além de outras tantas feitas para as 62 peças teatrais que musicou. Mas é muito difícil precisar o número exato, porque ela frequentemente reaproveitava músicas de uma peça para outra, mudando título e letra", diz Bia Paes Leme, coordenadora de Música do IMS.

 

 

"Ó abre alas" foi composta de forma bem pouco planejada. A compositora e maestrina morava no Andaraí, mesmo bairro da Zona Norte do Rio onde se reunia o cordão Rosa de Ouro, quando, num ensaio da agremiação, sentou-se ao piano e criou a marchinha, a pedido de seus integrantes. Essa partitura original, manuscrita por ela, faz parte do conjunto de partituras do Acervo Chiquinha Gonzaga. São mais de 24 mil páginas, já digitalizadas e organizadas em 1.112 PDFs  que estão disponíveis para consulta no site do IMS (acervos.ims.com.br). "É quase a totalidade da obra dela, são poucas lacunas", diz Bia. Para Preta Gil, não são apenas partituras. "São símbolos de resistência, expressões de uma alma que não quis ser abafada, calada e presa pela sociedade."

Além do material musical, o Acervo de Chiquinha Gonzaga reúne fotografias e grande quantidade de documentos, todos já digitalizados, mas ainda em processo de catalogação. E, desde o início de fevereiro, já é possível acessar fonogramas de músicas suas gravadas em 78 rotações, no site Discografia Brasileira, produzido pela Coordenadoria de Música. Entre dezenas de músicas da compositora, será possível ouvir uma versão de "Ó abre alas" gravada em 1911 e lançada em 1913, tocada pela Banda da Casa Edison, a primeira gravadora do país. Sabe-se que existe também uma versão com a Banda da Casa Faulhaber, gravada em 1910 e lançada em 1911, mas o fonograma ainda não consta do acervo do IMS. Essas duas gravações são instrumentais; ao longo das décadas, muitas outras se seguiram, mas só em 1971 foi feita uma versão com a letra, cantada pelas irmãs Dircinha e Linda Batista. Depois disso, a marchinha teria vários outros registros, como o de Antonio Adolfo, com participação vocal de Vital Lima e Nilson Chaves,  no disco Viva Chiquinha Gonzaga (1985), e o das  pianistas Maria Teresa Madeira e  Clara Sverner, com Paulo Moura no sax, no álbum Cinema Odeon (1996). Há ainda o vídeo com Ângela Maria, Marlene e Emilinha Borba cantando juntas, acompanhadas ao piano por Leandro Braga, um dos 29 clipes produzidos pela TV Globo para serem exibidos ao fim de cada capítulo da minissérie Chiquinha Gonzaga (1999).

A gravação de Preta Gil vem se somar a essas e outras tantas. "A primeira música de uma mulher feita para o carnaval não é qualquer uma. É também uma mensagem clara: que abram alas para as mulheres passarem, para homenagearmos outras grandes mulheres e darmos voz a outras tantas", proclama.

Nani Rubin é jornalista e integra a coordenadoria de internet do IMS

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