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Decio de Almeida Prado: 100 anos

11 de agosto de 2017

Por volta da década de 1950, que atores, sobretudo paulistas, deixavam a cena sem se perguntar: “O que será que o Decio achou?” – conta Paulo Autran no depoimento “Fecha-se o pano de uma estreia no TBC”.

O elenco saía do teatro – é ainda Autran quem conta – e rumava para o Nick Bar, onde ouvia as opiniões do proprietário, Joe Kantor, comerciante de reconhecido bom gosto artístico. Saindo dali já alta madrugada, ia ao prédio de O Estado de S. Paulo para comprar o exemplar do jornal recém-saído, com as primeiras impressões sobre a peça.

É que, ao longo de anos, mal o pano descia, o crítico de teatro Decio de Almeida Prado abandonava seu lugar na plateia e corria para a redação do jornal, onde escrevia sucintamente sua opinião sobre o espetáculo que acabara de ver. Desse modo, pacificava o elenco que esperava suas palavras. Nos dias que se seguiam, aí sim, ele elaborava o pensamento crítico em textos ensaísticos, saciando a curiosidade dos que queriam saber todos os porquês das observações feitas de primeira hora.

Durante 22 anos foi essa a rotina do intelectual paulista que, neste 14 de agosto, completaria cem anos. Quando Decio assumiu a crítica de teatro no Estadão, em 1946, a seção se intitulava “Palcos e Circos”. A partir de 1959, passaria a se chamar “Teatro”, mas até aí o nome do autor não era oficialmente escrito, embora ninguém ignorasse que se tratava de Decio de Almeida Prado. Na verdade, D.A.P., como ele passou a assinar, só apareceria de 1964 a 1967, nos três anos finais de sua colaboração no jornal.

Até chegar ao Estadão, aos 29 anos, ele já tinha percorrido um caminho movimentado na área das artes e das letras. A conjugação nunca lhe fora estranha. Desde pequeno, quando sonhava em ser poeta, o pai, homem de leitura, o levava ao teatro. Pode ser que aí tenha sido despertado seu gosto pelo palco, mas o menino preferiu acreditar que seria médico, como o pai.

Nem por isso chegaria a tentar a carreira de Medicina. Os três anos do curso de filosofia, de 1936 a 1938, com o professor Jean Mangüé, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, que tinha muito de literatura, definiram o destino do futuro crítico. Para se ter uma ideia da largueza de visão impressa por Mangüé, basta saber da sua crença de que “se devia estudar filosofia para poder entender o jornal que se lê de manhã”.

Coincidiu que, em torno do professor, juntou-se um grupo de jovens inquietos que, mesmo não chegando à sala de aula no mesmo ano, se uniriam pelo espírito crítico direcionado a diferentes campos das artes. Foi desse grupo que surgiu a revista Clima, em que Antonio Candido publicou seu primeiro artigo. Na “Oração aos velhos”, discurso que proferiu em 1994, Decio diria:

Tive de escrever por obrigação e não somente por prazer. Há mais ainda. Uma revista de jovens, [Clima] que reunia um grupo de amigos, deu-me, dentro da literatura, um espaço reservado, uma parte determinada, aquilo que se chamava seção fixa – a do teatro. Estava definido para sempre o meu futuro, no jornalismo e na universidade.

No periódico, Decio começou, de fato, a carreira de crítico teatral, mas, preparando-se para casar, e depois em lua de mel, não escreveu para o primeiro número de Clima, que estreou em maio de 1941, e sim a partir do terceiro, em que publica dois textos sobre o teatro “Louis Jouvet”.

Além dele, responsável pela coluna de teatro, havia Antonio Candido, que escrevia sobre Letras; Paulo Emilio Salles Gomes se encarregava do Cinema; Lourival Gomes Machado ficava com Artes Plásticas; Antonio Branco Lefèvre com Música e Marcelo Damy de Sousa Santos com Ciências.

O estado de efervescência de Decio era tamanho que, simultaneamente à colaboração na Clima, ele esteve à frente do Grupo de Teatro Universitário, o GUT (1943-1948), escola de dramaturgia e de arte dramática com universitários artistas do rádio-teatro. Sua mulher, Ruth de Almeida Prado, se encarregava dos figurinos, assim como das modestas finanças do grupo, cuja história está muito bem contada em “GUT, o ritmo vivaz”, de Mirian Lifchitz Moreira Leite, incluído em Decio de Almeida Prado: um homem de teatro.

Essa turma manteve a Clima, que deu nome a toda uma geração, até 1944. De tão ligados por afinidades naturais, e essencialmente investigativas, os rapazes, de certo modo, deram continuidade ao trabalho quando da criação do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, só que quinze anos depois, em 1956, quando, maduros, migraram para o periódico. O diretor do Suplemento? D.A.P. Na nova empreitada, havia uma boa diferença: não mais os recursos parcos de Clima, mas trabalho bem remunerado e franqueza suficiente para pagar a colaboradores do quilate de Drummond, Bandeira, Lygia Fagundes Telles e outros.

Uma seleção das críticas publicadas foi recolhida pelo autor em Apresentação do teatro brasileiro moderno: crítica teatral de 1947-1955, lançado em 1956. O livro, hoje um clássico da história teatral brasileira, tem toda uma seção sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Dedicado a seus alunos da Escola de Arte Dramática, foi escrito numa época em que “o nosso teatro”, afirma Decio no prefácio, “não adquiriu ainda o direito de se enxergar como documento histórico”. Ele publicaria ainda, entre outros, Teatro em progresso, de 1964, e Exercício findo, de 1987.

Na “Oração aos velhos”, Decio não perdeu a oportunidade de olhar para trás e reconhecer toda uma vida dedicada ao teatro. Não que ignorasse o feito. Afinal, era crítico por excelência. Mas pôde também considerar a liberdade que conquistara depois de tantos anos de devoção. Àquela altura da vida, permaneciam atualíssimas as palavras que escrevera em “Carta a uma jovem atriz”, de 1949, “em pensamento”, declarou ele, dirigida a Cacilda Becker, talento de sua predileção, ainda que não tenha, claramente, nomeado a destinatária. A descrição que faz sobre a natureza do ator é da maior agudeza:

O melhor ator nem sempre é o de maior capacidade imitativa, o mais maleável, o mais pronto a se transformar, se bem que essa plasticidade seja uma das pedras de toque da arte de representar. É que há outro elemento, mais imponderável e fugidio talvez, não menos importante: a personalidade. O ator não é como uma cera obediente que se limitasse a encher os moldes propostos pela imaginação do autor. Ao contrário, todo ator, em cada criação, dá alguma coisa de si, deixa transparecer algo da sua própria realidade. […] A verdade, portanto, é que tudo o que você ler, as músicas que ouvir, os quadros que admirar, tudo o que você sentir, tudo isso irá se refletir misteriosamente, sem que você o perceba, na sua arte, refinando-a, aprofundando-a psicologicamente, tornando-a, ao mesmo tempo, mais sua e mais universal.

Havia quem dissesse que Decio de Almeida Prado gostava mesmo era de futebol e ópera. Pois não se surpreenda quem ler a seção “Futebol”, a última do livro Seres, coisas, lugares: do teatro ao futebol, em que encontrará cinco textos sobre o tema. É possível reconhecer, na familiaridade com o esporte e nas observações sobre os jogadores, o espírito arguto do homem de irrestrita devoção ao teatro, que morreu em 4 de fevereiro de 2000.  Sua biblioteca e arquivo estão sob a guarda do Instituto Moreira Salles.

 

Decio de Almeida Prado, 100 anos em 2017

 


 

Três perguntas sobre Decio de Almeida Prado para Ana Bernstein e Vilma Arêas

 

Ana Bernstein é professora e autora de A crítica cúmplice – Decio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moderno (IMS, 2005). Vilma Arêas é professora e autora de, entre outros, Clarice Lispector com a ponta dos dedos (Companhia das Letras, 2005).

 

1. Pode-se dizer que Decio de Almeida Prado foi, sobretudo, um intelectual agregador. Como seria possível situá-lo, e o seu trabalho, no destino dos que dele se aproximaram? 

Ana Bernstein: Decio foi, além de agregador, principalmente um formador: ajudou a formar não só toda uma geração de atores e atrizes, começando por seu Grupo Universitário de Teatro — que mais tarde integrou o primeiro grupo de atores do TBC —, mas também todo um público para o teatro moderno por meio de sua atividade crítica, além de ter formado críticos e pesquisadores de teatro, como professor da USP e autor de diversos livros dedicados ao teatro brasileiro. Como diretor do Suplemento Literário do Estado de São Paulo, Decio abriu espaço para escritores, críticos, poetas e ensaístas, incentivando a literatura e a crítica ensaística brasileira, formando assim um público de leitores mais especializados diferente dos leitores do jornal diário.

Vilma Arêas: Decio de Almeida Prado sempre foi um intelectual agregador, qualidade fundamental para um professor. Escrevi minha tese de doutoramento sobre Martins Pena (“Na Tapera de Santa Cruz”) sob sua orientação. Tive sorte, pois ele era um interlocutor como poucos: atento, sem desejar imprimir em meu trabalho seus pontos de vista – espírito democrático raríssimo de se encontrar no jogo das vaidades acadêmicas – e, acima de tudo, grande especialista do teatro brasileiro. Às vezes me dizia: não concordo exatamente com esta interpretação, mas está muito bem articulada, pode deixar como está. Além desses traços de caráter profissional, Decio sabia ser amigo de seus alunos, estando sempre disponível para discutir qualquer tipo de assunto, dos pessoais aos problemas universitários. Numa só palavra, era um ser e um intelectual de exceção.

 

2. Seria correto afirmar que existe hoje uma desproporção entre o papel fundamental de Decio Almeida Prado na crítica teatral e a fraca presença de suas obras no meio cultural, especificamente aquele ligado ao teatro?

Ana Bernstein: Discordo. A importância da crítica e da obra ensaística e historiográfica de Decio é inegável e creio que no meio acadêmico, onde a reflexão e os estudos de teatro acontecem, ela é claramente reconhecida e apreciada. No entanto, o teatro mudou profundamente desde o tempo que Decio exercia sua função de crítico no Estado de São Paulo e a crítica também mudou. A verdade é que hoje não temos mais o mesmo espaço de crítica e de reflexão nos jornais. Ao mesmo tempo, a crítica passou a ocupar outros e novos espaços, como o das revistas eletrônicas como Questão de Crítica, dos periódicos acadêmicos como a revista Sala Preta da USP, a Urdimento da UDESC etc., e revistas especializadas, como a Folhetim.

Vilma Arêas: Do ponto de vista cultural é um desastre o descaso em relação a sua obra, pois deste modo sua experiência se torna inalcançável, com grande prejuízo para todos. A explicação só pode ser encontrada no espírito mercadológico do tempo. Decio não se vendia, não se autopromovia. Seu relativo esquecimento é uma prova do estreitamento do universo cultural em nosso país, que não é o único de nossos males.

 

3. Segundo Jacob Guinsburg, Decio de Almeida Prado aliava “o espírito do teatro ao teatro do espírito”. Como essa afirmação poderia ser interpretada?

Ana Bernstein: Em meu livro sobre Decio tomo emprestado o conceito de Antônio Cândido de crítica viva para caracterizar a crítica de Decio, que aliava ao mesmo tempo o que ele denominava de crítica impressionista (adotando por vezes um tom até mesmo mimético, como ele diz, em Exercício Findo: “Acreditava no destino com os gregos, na Divina Providência com os cristãos, no determinismo com os naturalistas, no materialismo histórico com os marxistas”) e a crítica universitária, resultado de uma sólida formação em filosofia e sociologia. A escrita de Decio é marcada por sua erudição, sua capacidade de ligar o local e o particular ao universal e ao social, sua preocupação com a perspectiva histórica adequada para a análise de uma determinada obra, por sua capacidade de apreciar a qualidade única de um autor ou de uma obra sem perder de vista a relação com os demais autores e obras de uma mesma época, e, ao mesmo tempo, por sua consideração da experiência sensorial, afetiva, do teatro. Esse teatro do espírito a que Guinsburg se refere pode ser percebido quando lemos os textos de Decio. Sua clareza de raciocínio, seu estilo elegante e seu humor espirituoso fazem da experiência da leitura de sua obra um verdadeiro prazer.

Vilma Arêas: O “espírito do teatro” tem a ver com sua dedicação ao estudo do teatro, sob todos os pontos de vista. O “teatro do espírito”, por sua vez, traz à tona a própria feição do universo teatral, “arte escrita no vento”, segundo Peter Brook, sempre recomeçada e sempre fugidia. Conforme se sabe, etimologicamente “teatro” designa o lugar de onde se vê o espetáculo, portanto aponta o espaço dos espectadores. Deste modo um especialista sabe que se movimenta intelectualmente num espaço vazio. Vazio mas compartilhado democraticamente para que o diálogo se estabeleça. Decio de Almeida Prado sabia disso.

 

Ana Bernstein e Vilma Arêas

 

Elvia Bezerra é coordenadora de literatura do IMS. 

  (Colaborou Elizama Almeida)