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Em 78 por segundo rotações

04 de fevereiro de 2020
Etiquetas redondas com informações sobre os discos 78 rpm
A Coordenadoria de Música do IMS está digitalizando os selos dos discos em 78 rpm produzidos no Brasil por 364 gravadoras

Um surpreendente João Gilberto pré-bossa nova solta a voz com vontade no início dos anos 1950, em canções como o bolero "Quando você recordar".  A dupla Jararaca e Ratinho, recém-formada, conta histórias à moda caipira e canta emboladas em 1929. Noel Rosa interpreta o seu delicioso samba "Com que roupa" em 1930. Chiquinha Gonzaga toca duas composições suas ao piano, em registros de um longínquo 1920. E Cauby arrasa em "Rock'n'roll em Copacabana", de Miguel Gustavo, primeira composição do gênero em português gravada no Brasil, em 1957.

Estas são algumas das preciosidades que estão disponíveis ao público desde o início de fevereiro no site Discografia Brasileira, organizado pela Coordenadoria de Música do IMS e projetado pela empresa Plano B. O objetivo do site é armazenar todos os discos brasileiros em 78 rpm (rotações por minuto) produzidos entre 1902, ano da primeira gravação realizada no país, e 1964, quando o formato seria substituído pelo de 33 rotações, tanto o de longa duração (o LP) como o compacto. Por enquanto é possível ter acesso a 46.660 áudios, de um total de 63.324 fonogramas catalogados.

"Estima-se que foram gravados 36 mil discos de 78 rotações no Brasil. É muita coisa. Revela uma indústria fonográfica pujante, em comparação com o resto do mundo", diz Bia Paes Leme, coordenadora de Música do instituto. Segundo ela, aquela indústria, incipiente, encontrou no Brasil um terreno fértil, em todos os sentidos. "O próprio clima, a temperatura, fez com que as gravações aqui fossem muito boas", diz, referindo-se à cera com que eram produzidos os discos.

 
Os fonogramas já oferecidos para audição no site vêm de diversas coleções abrigadas pelo IMS, como as de Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão. Mas o projeto só foi possível a partir de um trabalho anterior, iniciado nos anos 1970, quando um grupo de colecionadores, capitaneado pelo cearense Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, começou a trocar informações. Nirez vinha desde 1954 listando todas as gravações feitas no Brasil. Tarefa difícil, mas no caldeirão de ingredientes que formata um bom colecionador (persistência, paixão, curiosidade) entra uma pitada de loucura. Seu objetivo foi facilitado pelo fato de que cada uma das gravadoras existentes no país no período das 78 rotações (o Discografia Brasileira lista 364 delas) numerava seus discos. Assim, se um colecionador tinha o número 14 de uma determinada casa, sabia que antes dela havia outros 13, e corria atrás para preencher as lacunas.

A Nirez se juntaram o potiguar Gracio Barbalho, o paulista Alcino Santos e Jairo Severiano, cearense radicado no Rio. Juntos, produziram o livro “Discografia Brasileira em 78 rpm (1902-1964)”, uma obra portentosa, em cinco volumes, editada em 1982 pela Funarte e, desde então, atualizada por Nirez e seu filho, Otacílio de Azevedo Neto. Era a primeira base de dados da discografia brasileira, e trazia todas as informações que o grupo conseguira reunir: nome de gravadora, número do disco, nome da música, compositor, intérprete, acompanhamento, data da gravação e do lançamento. Nirez chama a atenção para o fato de que durante algum tempo muitos discos traziam apenas o Lado A. "A gravação em duas faces (lados A e B) fora patenteada pelo tcheco Fred Figner, pioneiro da indústria de discos no Brasil.  Só a partir de 1912 todos puderam lançar discos com uma música em cada lado", conta. Isso explica por que o número de fonogramas cadastrados não é o dobro do número de discos que se conhece.

A pitada de loucura (e persistência, paixão…) de Nirez fez com que ele digitasse diligentemente no computador, ao longo de sete anos, todas as informações acumuladas naqueles cinco volumes da Discografia Brasileira. É este banco de dados que o IMS comprou em 2015, origem do site de mesmo nome. Com ele, o instituto também adquiriu a coleção digitalizada de 78 rotações de Nirez, com mais de 40 mil gravações. Ela veio se somar a milhares de outros fonogramas já sob a guarda do IMS.

E, a esse conjunto, serão ainda acrescidas as gravações da maior coleção privada de discos em 78 rotações do país: a do pernambucano Leon Barg (1930-2009), radicado nos anos 1950 em Curitiba, onde manteve seu acervo. O IMS adquiriu em 2019 seus 31.265 discos, e iniciará em breve o processo de higienização e digitalização. "Acredito que muitas lacunas poderão ser preenchidas. Acho que podemos chegar a 80% de toda a discografia em 78 rotações do Brasil", avalia Bia.

 

Homem apoiado num peitoril com prédios ao fundo
Pedro Paulo Malta, editor do site Discografia Brasileira. Foto de Clara Angeleas

 

A profusão de fonogramas tem feito a alegria do editor do site, o cantor, jornalista e pesquisador Pedro Paulo Malta. "Estou no playground, se pudesse moraria dentro da Discografia Brasileira", diz ele, que tem se deleitado em ouvir os registros para sugerir leituras desse vasto acervo, em posts que chamam atenção para histórias deliciosas. "Minha tarefa, como editor, é propor possíveis janelas para o cara entrar, a partir de curiosidades, olhares", diz ele. Quem acessar o site já vai poder ler o post sobre o vozeirão de João Gilberto, acompanhado de seis fonogramas. Há outro sobre o encontro de um novato Dorival Caymmi, recém-chegado ao Rio, e Carmen Miranda, já uma estrela, com os fonogramas do disco lançado pela Odeon em 1939: no lado A, os dois cantam juntos "O que é que a baiana tem"; no B, repetem o dueto com "A preta do acarajé". Pedro Paulo prepara agora um post sobre Bahiano (1870-1944), cantor dos primeiros discos no Brasil, intérprete dos maiores sucessos antes da era do rádio, como o samba "Pelo telefone" (1917). Bahiano tem 509 registros no site, mas poucos fonogramas dos primeiros anos. Um deles é justamente o de  "Isto é bom", o primeiríssimo disco lançado no país, gravado pela Zon-o-phone, indústria alemã à qual Fred Figner havia se associado.

 

Dorival Caymmi e Carmen Miranda
Dorival Caymmi gravou com Carmen Miranda em 1939 "O que é que a baiana tem" e "A preta do acarajé", s.d. Fotógrafo desconhecido. Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo IMS

 

Uma das curiosidades do site é justamente ouvir as gravações dos primórdios da indústria, quando o registro ainda era mecânico. O intérprete cantava na boca de um grande cone, que convertia as ondas sonoras em ranhuras nas matrizes. Nos fonogramas disponibilizados, ouve-se o cantor vociferando seu nome e o nome da gravadora, às vezes até o endereço, e gritando (literalmente) a música. "Em 1927, com a chegada da gravação elétrica, com microfone, muitos cantores tiveram que reaprender a cantar, porque se gritassem arrebentavam o microfone", diz Nirez. "Não tinha a menor chance para um carinho, um beijinho, nada, tudo no soco", acrescenta Pedro Paulo, observando que vários artistas não conseguiram se adaptar, caso de Vicente Celestino. "Mas tinha os cantores de vozeirão, como o Francisco Alves, que amaciaram a voz", ressalta. "Tudo isso tem um valor histórico enorme. Por isso acho interessante a gente contar essas histórias tendo um banco de dados à mão", completa.

O site permite nove tipos de busca (como título, ano de gravação e lançamento, gravadora, autor, intérprete), e ainda cruzamentos entre elas. É possível fazer playlists variadas, com cantores, temas, e até de arranjos diferentes para uma determinada composição. Já há playlists prontas, como uma que reúne 20 músicas tendo o Flamengo, o time, como tema. A Coordenadoria de Música do IMS também está digitalizando os selos dos discos, colados no miolo (os 78 não tinham capas, vinham num envelope branco, sem nenhuma identificação). É um trabalho extenso, que busca dar o máximo de informações possíveis ao público, como feito anteriormente nos sites dedicados a Ernesto Nazareth (2012) e Pixinguinha (2017).

 

Retrato de homem usando chapéu e terno
Bahiano, intérprete do samba "Pelo telefone", gravado em 1917. Fotógrafo desconhecido. Coleção José Ramos Tinhorão / Acervo IMS

 

Bia Paes Leme acredita que com o lançamento do site, muitos colecionadores possam procurar o IMS com fonogramas que faltam. "É o único jeito de manter esta memória viva, já que a maior parte das matrizes foi derretida, vendida como sucata", lamenta. Nirez vê com alegria seu trabalho de tantos anos se tornar tão amplamente acessível, mas pensa ser difícil completar o álbum de figurinhas. "Ao mesmo tempo, olhando como colecionador, acho bom ficar assim, porque o colecionador só é colecionador enquanto falta alguma coisa. No dia em que o colecionador completar a coleção não tem mais graça", diz.

Nani Rubin é jornalista e integra a coordenadoria de internet do IMS