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Encontro de Guernicas

26 de abril de 2017

 

Na quinta-feira, 27 de abril, a inauguração de uma exposição no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, será responsável por unir, embora não lado a lado, a icônica Guernica, obra-prima de Pablo Picasso e estrela maior do acervo da instituição, e a versão feita pelo nosso Millôr Fernandes. O incrível encontro, que nem mesmo nos sonhos mais delirantes o genial carioca teria imaginado, foi proporcionado pela mostra Mário Pedrosa: de la naturaleza afectiva de la forma, que pontua a trajetória intelectual do crítico brasileiro por meio de uma seleção de trabalhos de artistas que ele analisou, Millôr entre eles. Guernica: um minuto antes, de 1981, foi uma das 20 obras (entre originais e reproduções) selecionadas pelos curadores Michelle Sommer e Gabriel Pérez-Barreiro no acervo do Instituto Moreira Salles, guardião da produção gráfica de Millôr desde 2013.

A Guernica de Millôr durante a montagem da exposição espanhola (foto de Julia Kovensky)

A exposição enfatiza o papel do desenhista, humorista, escritor, dramaturgo e tradutor, que morreu em 2012, no circuito das artes plásticas, um reconhecimento feito por Pedrosa em crítica sobre a primeira exposição individual de Millôr, realizada em 1957 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. “A impressão primeira (…) é a do desenhista. Desenhista sensível e inventivo. A parte do humor fica por baixo da qualidade de seu traço e perdida na sugestividade de seu espaço”, escreveu o crítico no Jornal do Brasil. “De certa forma, Mário Pedrosa nos liberta para curtimos Millôr com tranquilidade”, brinca Julia Kovensky, coordenadora de Iconografia do IMS. “Ele se defendia um pouco, sempre se dizia jornalista, mas a obra transcende tudo, e às vezes fica até maior do que o próprio autor previu. Como mostra esse feliz desdobramento de ver os trabalhos dele ao lado de grandes nomes. Para o Brasil, para um artista brasileiro, para a nossa história, é uma notícia sensacional”, comemora Julia, uma das curadoras, ao lado de Cássio Loredano e Paulo Roberto Pires, da mostra Millôr: obra gráfica, retrospectiva que ficou em cartaz no IMS-RJ entre abril e agosto de 2016.

O encontro entre as duas obras acontece no mês em que a Espanha e o mundo lembram os 80 anos do bombardeio da aldeia de Guernica, em 26 de abril de 1937, episódio sangrento da guerra civil que assolou o país entre 1936 e 1939, e teria inspirado Picasso. A Guernica de Millôr, como o nome indica, é uma cena captada momentos antes daquela pintada pelo espanhol em 1937, e exibe cores exuberantes, rostos felizes e ainda inocentes da tragédia que se abaterá sobre eles em pouco tempo. Na tela de Picasso, os tons e efeitos sombrios dos horrores das guerras transformaram a obra numa das mais emblemáticas do século XX. No início de abril, o Reina Sofia inaugurou Piedad y Terror em Picasso – El camino a Guernica, que registra, em quase 200 obras, as formas pelas quais o artista trabalhou o tema do medo e da morte até chegar à magistral tela, encomendada pelo governo espanhol para a Exposição Internacional de Paris daquele ano. Para a mostra em Madri, o desenho de Millôr, originalmente medindo 72,7 x 101,9cm, foi ampliado para 200 x 276cm, ganhando uma proporção mais próxima ao mural de Picasso, facilitando ainda mais uma “conversa” entre ambos.

Guernica de Millôr, um minuto antes, e Guernica de Picasso, um minuto depois

Millôr criou sua Guernica para uma exposição na Funarte do Rio, em 1981, na qual diversos artistas reinterpretaram a celebrada pintura. Em 2009, o desenho foi publicado em sua coluna na revista Veja. “A cena se passa – como a posterior – num espaço interno-externo, casa-praça, alegria vilareja e doméstica. Uma pomba pacífica brinca com o rabo do touro, cheio de virilidade – notar os testículos. O touro tem a satisfação do animal (homem) que está em sua querência. O cavalo dança. Em verdade cavalo e touro são lúdicos, de bumba-meu-boi. Uma luz no alto ilumina, claro-claro, (predomínio do amarelo), tudo! Um jovem militar oferece uma flor a uma jovem guerniquense com seus seios ansiosos de maternidade.  À esquerda a mulher já-mãe cuida de seu filho. À direita uma ama encaminha um bebê para a saída (para uma obra futura do pintor) enquanto, à janela, Bernarda e Alba fofocam, contentes. Uma pede à outra querosene emprestado, sem pressentirem os agressores, no céu azul”, descreveu ele no texto que acompanha a imagem.

Michelle Sommers conta que a seleção das obras de Millôr, que ocupam uma sala inteira na mostra sobre Mário Pedrosa, amparou-se fundamentalmente na exposição de 1957 no MAM, da qual fez parte, por exemplo, Deformação profissional. Em sua crítica, Pedrosa definiu o desenho, também visto em Madri, como “um dos mais belos exemplos desse modo de casar o espaço e a figura”. Enterro de Mondrian, Memento de Ravena, O nascituro e A ameaça são alguns dos outros trabalhos de Millôr exibidos no Reina Sofia, ao lado de gigantes das artes plásticas brasileiras como Portinari, Volpi, Djanira, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Goeldi e Rubens Gerchman.

Deformação profissional /Acervo IMS

Em 2014, na abertura da Festa Literária Internacional de Paraty, que homenageou o desenhista, o crítico Agnaldo Farias também chancelou o Millôr artista, estabelecendo afinidades entre ele e a produção de Picasso e Miró, por exemplo. Lembrou ainda que a história da arte sempre negligenciou o trabalho de cartunistas, e por isso o brasileiro ainda não havia recebido o devido reconhecimento.

“Essa história do Millôr artista, pintor, sendo exibido em galerias e museus é uma novidade. Até então ninguém explorava esse lado dele, suas relações com outros pensadores da época, como um crítico de arte. Esse é um desdobramento da exposição no IMS, do trabalho de conservação e difusão do acervo dele que estamos fazendo” observa Julia, adiantando que em 2018 a retrospectiva montada no IMS-RJ será apresentada no IMS-São Paulo.

Apesar do reconhecimento importante da contribuição de Millôr às artes plásticas, Julia acredita que ele próprio nunca sentiu muita necessidade de explorar esse lado. “Millôr tinha a atividade principal dele, na qual sempre foi muito bem”, diz ela. “A arte foi um dos seus muitos e excelentes ‘desvios’, assim como a tradução, o teatro… Ele começou muito cedo na imprensa e terminou nela. Foi um homem coerente”.