Em prefácio à edição de 1966 de Olhai os lírios do campo, o escritor gaúcho Erico Verissimo confessou não ter muita estima por seu romance mais popular. Vinte e oito anos após a primeira edição, que faz parte de sua biblioteca no Instituto Moreira Salles, Erico criticou o idealismo da obra. “Acho-o hoje um tanto falso e exageradamente sentimental. Sua popularidade às vezes chega a me deixar constrangido”, revelou. Decerto, Olhai os lírios do campo não poderia gozar de mais vasta e positiva recepção crítica.
Já em 1938 uma coluna de autoria não identificada da Revista do Globo, onde Erico trabalhou na mesma década, celebrava a aparição do livro, que profissionalizou o ofício de escritor no Brasil. “A extraordinária procura do último livro de Erico Verissimo, os aplausos entusiásticos que acompanham o seu triunfo, indicam-nos que já possuímos um público. Isso quer dizer que a fase do sacrifício – para os escritores e editores – já passou.” A mesma revista publicaria, no ano seguinte, artigo de Antonio Barata, saudando o êxito comercial da obra. Entre julho de 1938 e março de 1939, o livro ganhou cinco edições. “Vinte mil volumes de um romance brasileiro em nove meses! Dando-se que cada volume seja lido por quatro ou cinco pessoas, tem-se que quase cem mil indivíduos já leram Olhai os lírios do campo. E as edições continuam a se suceder, sabe Deus até quando!”, registrou. Tamanho sucesso refletiu-se na presença de oitenta exemplares da obra em diferentes conjuntos bibliográficos de titulares de acervos do IMS.
Olhai os lírios do campo narra o drama de Eugênio, que sacrifica sua paixão por Olívia para se casar com Eunice, filha do poderoso empresário Vicente Cintra. A riqueza sempre fora miragem para o rapaz, de família humilde e religiosa. Na infância, Eugênio acostumou-se a ouvir de sua mãe que a pobreza resultaria da força do destino – ou de Deus. A resignação maternal causa no personagem um desejo indomável de ascender socialmente, o que provoca uma cisão na arena discursiva do romance entre amor (Olívia) e riqueza (Eunice).
A escolha de Eugênio é o ponto de tensão que sustenta o enredo, ambientado em Porto Alegre. Não à toa, a natureza local serve de ferramenta para a constituição linguística do mistério que perpassa a trama. “O sol da tarde doura os campos. O açude reluz ao pé do bosquete de eucaliptos. Mas Eugênio só enxerga os seus pensamentos.” A riqueza imagética alcançada por Erico ocasionou a adaptação do romance para os cinemas em 1947.
A première mundial de Mirad los lírios del campo, filme do diretor argentino Ernesto Arancibia, foi um acontecimento na noite porto-alegrense. A atriz Silvana Roth, que encarnou o papel de Olívia, visitou a capital do Rio Grande do Sul, onde apreciou, ao lado de Erico, a natureza misteriosa descrita no livro. Em reportagem para a Revista do Globo, o jornalista José Amádio documentou o encontro entre a atriz e o escritor. “Não acredito que em nenhuma outra parte do mundo haja uma tão grande riqueza de verdes. Veja bem: esta paisagem não aniquila, não abafa, não ofusca como a paisagem do Rio, não tem nada de cartão-postal, é doce, amiga e não cria problemas”, declarou Erico.
Impressionada com a personagem, Roth disse que desconfiava já ter estado em Porto Alegre anteriormente, porque se sentia em casa. “Claro! Você viveu aqui, aqui se formou, aqui amou Eugênio, aqui o regenerou e aqui morreu. Quer ir ao cemitério ver a sua sepultura?”, respondeu o criador de Olívia. No dia anterior à visita, Erico já se mostrava emocionado. “Encontro-me pela primeira vez na minha carreira de contador de histórias numa situação singular. Um dia escrevi um romance a cuja heroína dei o nome de Olívia. Imaginei para ela um corpo e principalmente uma alma. (...) Agora estou me preparando para ir ao aeroporto esperar a encarnação da minha personagem...”.
A reportagem de Amádio registrou o furor da noite no cinema Marabá. Duas horas antes da exibição, a sala já estava abarrotada. Enquanto Roth recebia cumprimentos de personalidades no camarim, a multidão subia nas poltronas, na tentativa de avistar a estrela ítalo-argentina. Ao final da sessão, Roth deixou sua mão impressa no cimento, para eternizar a visita a Porto Alegre. A película de Arancibia não seria a única adaptação audiovisual de Olhai os lírios do campo. Em 1980, a atriz Nívea Maria fez o papel de Olívia na telenovela homônima veiculada pela Rede Globo, na faixa das dezoito horas, o que aumentou ainda mais a popularidade da história.
Não se nega a riqueza imagética de Olhai os lírios do campo, mas, sob o aspecto estrutural, o romance, alicerçado em fundamento trágico, pode ser considerado uma ópera às avessas. Dividida em duas partes, a narrativa prevê a catástrofe desde a primeira página, quando Eugênio recebe uma ligação da enfermeira irmã Isolda, do hospital Metropolitano, informando que Olívia se encontrava em fase terminal. Tão logo recebida a notícia, o personagem enfrenta “a canseira duma longa corrida desabalada”. Chama depressa Honório, o chofer, e cai na estrada dentro da noite veloz. Na primeira parte do livro, a noite fria não tem fim. Ao final de todos os capítulos, a narrativa estaca em parágrafos em que o autor, no fluxo de consciência de Eugênio, demonstra dominar ritmo e melodia das orações. “A luz da tarde é doce e tristonha. O gado pasta nos campos, um quero-quero solta o seu grito estridente, um cachorro late longe.”
O escritor registra a viagem de Eugênio em frases como “O auto corre”, “O automóvel atravessa um pontilhão”, “O auto desliza sobre o cimento”. Ainda que o destino de Olívia esteja na morte, a travessia rumo ao hospital tem para Eugênio um caráter especulativo, visto que seu próprio futuro está indefinido. Desse modo, o romance segue o princípio de suspensão temporal, outro fundamento da estrutura operística.
A travessia no final de cada capítulo convive com a natureza formativa do romance. Já no segundo capítulo voltamos à infância de Eugênio, que após muito esforço ingressa na faculdade de medicina, inspirando-se no doutor Seixas. Na formatura o jovem conhece Olívia, que usava um vestido “branco e vaporoso”. Os jovens empreendem um breve relacionamento, interrompido quando Eunice Cintra demonstra interesse pelo médico com uma pergunta sugestiva: “Você conhece Freud?”.
Nascido em Cruz Alta (RS) no ano de 1905, Erico conheceu os dois lados da vida. Sua família era abastada, mas passou por momentos de dificuldade financeira. Após a farmácia de seu pai sucumbir às dívidas, Erico trabalhou como balconista em um armazém e no Banco Nacional do Comércio. Em 1927 conheceu Mafalda Halfen Volpe, com quem se casaria quatro anos depois. Com a publicação de Olhai os lírios do campo, pôde fazer da literatura sua profissão. Morou três vezes nos Estados Unidos, onde proferiu conferências, lecionou literatura brasileira na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e dirigiu o departamento de assuntos culturais na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington. Publicou dezenas de livros, tendo se notabilizado pelo clássico O tempo e o vento, trilogia dividida em sete volumes (1949-1962). Morreu em 1975, vítima de um infarto.
Muito se estudou sobre a religiosidade em Olhai os lírios do campo. A influência do Sermão da Montanha é explícita no título e na descrição da famosa carta de Olívia, com ensinamentos lidos por Eugênio após a morte da ex-companheira.
Quero que abras os olhos, Eugênio, que acordes, enquanto é tempo. Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros, perto do rádio, leias apenas o Sermão da Montanha. (...) Os homens deviam ler e meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios do campo que não trabalham nem fiam, e no entanto nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles. (...) Precisamos, entretanto, dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver deixando cego, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu.
A dicotomia amor (Olívia) e riqueza (Eunice) transmuta-se na disputa entre os campos transcendente e imanente. Em diversos momentos da segunda parte do livro, Olívia é uma figura espectral, cuja encarnação se encontra em Anamaria, fruto de seu amor com Eugênio. Anterior à religiosidade da obra, lembremo-nos da tragédia encerrada em cenas do cotidiano da vida médica – o menino com difteria, a mulher que corta os pulsos por acidente, o estafeta dos Correios atropelado.
O sentido trágico de Olhai os lírios do campo comporta sua natureza mitológica. Ainda que coadjuvante, irmã Isolda, como um “fantasma branco”, é mensageira em dois momentos centrais do romance: o aviso do estado terminal de Olívia e a confirmação de sua morte. Erico ambicionou desvendar o nascimento e a morte do amor, como no mito de Tristão e Isolda. Ao contrário da ópera de Wagner, não desejou exatamente revelar a “respiração universal”, mas o que o amor pode ensinar à vida de cada um.
No prefácio de 1966, Erico diz se incomodar com a estrutura do romance. “A primeira parte é intensa e cheia dum interesse que jamais enfraquece. Na segunda, porém, esse interesse declina, e a história se dilui numa série de episódios anedóticos sem unidade emocional”, escreve. Se há desnível da intensidade narrativa, talvez as cenas da segunda parte tenham coesão na suposta amizade entre Eugênio e Filipe Lobo, empresário nazista que aponta Wagner como compositor de sua predileção.
Obcecado pela construção do Megatério, um prédio suntuoso e moderno, Lobo é, para Eugênio, sua antilira ambulante. O empresário impede que sua filha Dora se case com Simão, um judeu pobre. A primazia do amor, inalcançada por Eugênio, é projetada na inquietude com que o médico lida com a história entre Dora e Simão. Se em um primeiro momento se apieda com o drama do casal, surpreende ao delatar as pretensões de Dora de fazer um aborto.
Eugênio troca o lírio pelo Megatério. Fecha os olhos aos lírios do campo. Quando tentou abri-los, já era tarde. Restaram a riqueza, os eventos da alta sociedade, a amizade com Lobo, a lembrança de Olívia em Anamaria.
“Mas ninguém está perdido”, falou Olívia em seu espírito. Sim, era doloroso: ele havia esquecido por completo o som da voz dela. No entanto sabia que Olívia estava viva, sentia-se agora invadido pela estranha impressão de que ela lhe marcara uma entrevista à sombra das árvores do parque. Conversariam de si mesmos e dos outros, enquanto Anamaria atirasse migalhas para os marrecos do lago...
Colaborou Manoela Purcell Daudt D’Oliveira, arquivista da coordenadoria de Literatura do IMS
Gustavo Zeitel, jornalista, é estagiário na Coordenadoria de Literatura do IMS