Não me recordo como chegaram em minhas mãos, no ano de 1995, duas fotografias da Móveis Artísticos Z, feitas por Hans Gunter Flieg (1923), que logo me chamaram a atenção por sua beleza e pela fascinante história da fábrica de mobiliário. Embora fosse citada como uma importante referência no universo do design brasileiro nos anos 1950, até meados da década 90 quase nada se sabia sobre a história da Móveis Artísticos Z (1) ainda que fosse viva no universo imaginário popular: sempre alguém dizia que a avó tinha esses móveis em casa. A certeza da relevância do empreendimento vinha de um nome: José Zanine Caldas (1919-2001), cujo centenário de nascimento será comemorado em 2019.
Zanine, que em 1948 fundou a Móveis Artísticos Z em São José dos Campos, ao lado de Sebastião Pontes e Paulo Mello, foi um autodidata talentoso, tendo atuado como arquiteto e designer de móveis e objetos. Um de seus maiores legados foi a introdução de uma técnica inovadora de confecção de maquetes, por meio de compensado de madeira, que auxiliou alguns dos principais arquitetos modernos brasileiros, como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Rino Levi. Hoje pode parecer pouco, mas em um período pós-guerra, com a tecnologia do concreto armado ainda em aperfeiçoamento, a possibilidade de visualizar a forma da edificação em escala, como meio de validar o projeto, foi um recurso excepcional naquele momento decisivo da arquitetura brasileira.
Ao receber as fotos de Flieg apropriei-me imediatamente das imagens e, devido ao curto prazo, publiquei-as sem a sua devida autorização – mas dando o crédito – no meu trabalho de graduação, “Arquitetura Moderna: São José dos Campos” (1997), posteriormente convertido em livro. Fui então encontrar o fotógrafo para presenteá-lo com um exemplar (torcendo para ser perdoado por não tê-lo consultado sobre a publicação), intencionando descobrir se ele teria mais fotografias das instalações da Móveis Artísticos Z. Algo me dizia que eu acharia mais imagens que poderiam me ajudar na pesquisa, já no Mestrado, dado o caráter do trabalho de Flieg, cujo trabalho integra o acervo do Instituto Moreira Salles desde 2006: austero, rigoroso e detalhista, típico de um alemão exigente.
A história posterior é longa, mas o que resultou desse encontro foi uma coleção de fitas cassetes de depoimentos de Flieg e uma lista considerável de registros fotográficos de empresas, obras arquitetônicas e produtos industriais produzidos entre o final dos anos 50 e início dos anos 70, em especial na cidade de São Paulo. Ao longo de um ano passei todas as terças-feiras gravando relatos de Flieg sobre cada série de fotografias que tratassem de arquitetura e desenho industrial.
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Era uma emoção enorme quando “Seu Ney”, assistente de Flieg, trazia do acervo localizado em outro endereço as chapas de vidro produzidas pelas câmaras fotográficas Linhof. Entrávamos em êxtase quando alinhavávamos a superfície da chapa de vidro ou da gelatina com a luz incipiente da pequena luminária para ver o brilho da prata contido na emulsão fotográfica.
Manipular esses negativos sob a luz contrastante, devidamente registrados pela velha lupa de escala, era o ápice dos nossos encontros. E de alguma forma, para mim, era um momento mágico, enquanto “Seu Flieg” seguia narrando: entrava em outro mundo, e por alguns instantes, me via sobrevoando cordilheiras de prata, com diferentes brilhos e gradientes, um mundo totalmente desconhecido, absorvido e intrigado pela ideia de como superfícies irregulares e caóticas se convertiam em imagens perfeitas e claras. Como “Seu Flieg” sempre teve uma memória extraordinária, as conversas que se iniciavam no meio da manhã não tinham horário para acabar no fim da noite.
Tive em mãos várias séries de fotografias sobre mobiliários, calçados, cristais, veículos, objetos do cotidiano da casa e do trabalho, entre outros produtos industrializados, além de registros fotográficos sobre obras de artistas como Tarsila do Amaral, Max Bill, Diana Dorothea Danon, Eleonore Koch, Bruno Giorgi, Felícia Leiner, Djanira da Motta e Silva, Gershon Knispel e da arquiteta Lina Bo Bardi (2). Vi fotos de máquinas industriais de todos os tamanhos e de tipologias, das máquinas de calcular Olivetti às imensas turbinas de usinas hidrelétricas.
Por se especializar em fotografia de publicidade (3), de arquitetura e desenho industrial, Flieg desenvolveu uma apurada técnica de registro onde toda parte do tema fotografado era devidamente notado. E essa atenção tornou-se uma obsessão para o fotógrafo, levando-o a inventar soluções por meio de valorização da luz e contraste, com o uso de materiais auxiliares que evidenciavam as qualidades inerentes de cada produto – algo que, para os menos atentos, não seria notado. De alguma forma, percebíamos isso na densidade da emulsão de prata impregnada no negativo.
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Posteriormente, esse rigor técnico de suas fotografias me permitiu pontuar algumas correções históricas e fazer ajustes temporais, graças à precisão do contraste, do respeito à textura dos materiais fotografados e do foco perfeito: uma linguagem apropriada para o universo industrial no qual Hans Gunter Flieg foi especialista. Quando se trata de desenho industrial, esse recurso para fins de pesquisas históricas se torna intrínseco: não é possível estudar a história do desenho industrial ou design sem fotografia com qualidade. Vivenciei esse desafio de fazer uso da qualidade das fotos de Flieg para checar a originalidade de uma poltrona, posteriormente validada na Bienal de Arquitetura de 1999.
Os desenhos originais da Móveis Artísticos Z hoje estão perdidos, mas a história da coleção de móveis que marcou época na década de 1950 – e que em 2018 completaria 70 anos – está viva nas fotografias e nos negativos produzidos por Flieg. Os belos ensaios com dezenas de imagens me proporcionaram reconstruir esta extraordinária história de sucesso do desenho industrial brasileiro.
Eu e meus colegas da época na Comissão de Arquitetura da Fundação Cultural Cassiano Ricardo decidimos que devíamos proporcionar um encontro entre Flieg e José Zanine Caldas. E assim fizemos em 1998: trouxemos os dois para São José dos Campos, para primeiro agradecer e proporcionar esse encontro entre amigos e escutar suas mensagens e histórias e, por fim, para prestar a devida homenagem por suas excepcionais conquistas e contribuições para a cultura brasileira.
Hoje, na perspectiva de um aprendiz, vejo a coleção de Hans Gunter Flieg ainda como um mundo a ser explorado, tamanha a quantidade de assuntos e histórias a serem reveladas, que nos dizem também como a cultura material brasileira é fascinante e diversificada. Assim, convido todos a viajarem nesse universo maravilhoso, e ainda pouco pesquisado, das imagens de Flieg.
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(1) Deve-se ressaltar a importância do livro “Móvel Moderno no Brasil” (Nobel, 1995) de Maria Cecília Loschiavo dos Santos que cita a Móveis Artísticos Z e publica algumas fotos de autoria de Hans Gunter Flieg.
(2) Renato Anelli, orientador no mestrado sobre a Móveis Artísticos Z, autor de texto sobre Lina Bo Bardi no Blog do IMS.
(3) Sobre fotografias de publicidade produzidas por Hans Gunter Flieg, pesquisar o blog de Ricardo Mendes.
Alexandre Penedo é arquiteto urbanista e pesquisador sobre arquitetura e mobiliário moderno. Publicou o livro Arquitetura Moderna: São José dos Campos (1997). Durante seu mestrado sobre a Móveis Artísticos Z, trabalhou durante dois anos com Hans Gunter Flieg, catalogando e colhendo depoimentos do fotógrafo sobre os temas de arquitetura registrados por ele. Seu doutorado aborda a forma do mobiliário moderno brasileiro e a paisagem tropical.