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Frans Post

10 de setembro de 2014

Com a obra Vista sobre um vale (1667, CL 101), o pintor holandês Frans Post (1612-1680) continuou a aprimorar a experiência que utilizou para definir a sua vida profissional. Em 1667, haviam se passado 20 anos desde que ele acompanhara o governador Maurício de Nassau à porção do Nordeste brasileiro conquistada pela Companhia das Índias Ocidentais em uma guerra de alcance mundial entre a monarquia portuguesa e a república holandesa. Durante os sete anos em que permaneceu na região, ele fez muitos desenhos documentais de locais, edificações, plantas e animais peculiares. No Recife, usou esses registros de observações para compor pinturas para o seu mecenas. Os quadros mostram fortificações holandesas, o campo de batalha de Porto Calvo e cidades que serviam de centros administrativos. Uma pintura foi dedicada ao cultivo da cana-de-açúcar, o principal motivo da conquista. Em seu conjunto, representavam a colônia portuguesa conquistada. Ao retornar a Haarlem, sua cidade natal, em 1644, Post continuou a produzir quase exclusivamente cenas brasileiras, algumas por encomenda, outras para o mercado.

 

Vista sobre um vale, de Frans Post, 1667
Óleo sobre madeira, 45 x 54 cm.

O que vemos no fundo da pintura no Instituto Moreira Salles (IMS) é uma extensão de planície verde-azulada cortada por rios sinuosos ao pé da encosta. Essas áreas de delta eram chamadas de “várzeas”. No primeiro plano da composição, ao centro, um grupo de mulheres negras e indígenas, acompanhadas por um indígena e pelo que parece ser um menino negro, é retratado num cruzamento de estradas não pavimentadas, marrom-amareladas, numa área mais elevada. As estradas descem entre arvoredos verde-escuros em direção às baixadas ou sobem em direção ao topo do morro à esquerda, onde um grupo de casas compacto sugere um povoado ou ao menos um vilarejo. Com seus cestos largados no chão, duas negras sentadas estão descansando e conversando, enquanto as duas indígenas em pé e o menino negro ali por perto também estão fazendo uma pausa. Uma negra carregando um cesto sobre a cabeça está caminhando morro abaixo em direção à baixada, onde uma figura semelhante, quase imperceptível em meio às árvores altas e escuras, está a caminho do povoado sobre o morro. No repoussoir (elemento de contraste no extremo do primeiro plano) à direita, um coqueiro e um mamoeiro vigiam a paisagem de morros e planície. Como em todas as pinturas de Post, um céu – um pouco menos azul do que em outras obras desse período e parcialmente coberto por algumas nuvens – ocupa a maior parte da composição.

Paisagens de várzea foi um dos temas prediletos de Post após seu retorno à Holanda. Cerca de um quarto dos 148 quadros conhecidos pintados depois de 1644 podem ser assim rotulados. Com a única, mas notável, exceção de A cachoeira de Paulo Afonso, nunca são paisagens puras. Contêm quando menos algumas figuras e edificações, que fornecem informações mínimas sobre o modo de vida naquele tipo de ambiente natural. Cada um dos diversos elementos – figuras, plantas, árvores, edificações e aspectos geográficos – sugere que foi pintado “segundo a vida”, isto é, como se pudesse ser observado no mundo real. Todavia os elementos são utilizados para construir um tipo de paisagem, não um lugar específico. Ao contrário das obras pintadas no Brasil, as obras posteriores não guardam exatidão topográfica. Constituem, por assim dizer, uma abstração concreta. Há paisagens de várzea de todas as dimensões. Uma de grandes proporções pintada sobre tela (282 x 210 cm, CL 16), atualmente no Rijksmuseum de Amsterdã, deve ter sido encomendada para uma casa ampla. A maior parte delas foi pintada sobre painéis, em um formato semelhante à obra do IMS (44 x 54 cm, CL 101). A pintura contém relativamente poucas figuras, edificações, plantas ou árvores, executadas em minuciosos detalhes. É um quadro simples, provavelmente destinado a ter uma pronta comercialização no mercado.

As paisagens de várzea estão estreitamente relacionadas a dois dos outros temas prediletos de Post após 1644: cenas de povoado e engenhos de açúcar. Isso é mais claramente demonstrado por pinturas que foram reunidas em pares, por Post ou por seus proprietários. Um desses conjuntos (CL 23 e 24) é formado por duas obras de dimensões semelhantes (51 x 70 e 54 x 82 cm), datadas de 1654. As pinturas faziam parte da Coleção Six, montada pela família homônima de patrícios holandeses, que pode ter adquirido as obras no século XVII. Uma delas representa uma paisagem de várzea semelhante à obra do IMS. Alguns indígenas e negros são retratados num trecho mais amplo de estrada, enquanto outros seguem caminho em direção à baixada. No rio, algumas embarcações a vela podem ser discernidas. Ao longe, casas isoladas e pequeninas quase desaparecem em meio às árvores circundantes. Na segunda pintura, o primeiro plano e o plano intermediário são ocupados por uma feira num povoado. Negros, indígenas e brancos (presumivelmente portugueses, em vez de holandeses) se distraem num espaço aberto entre umas poucas casas e uma igreja. Post dispôs as edificações de tal maneira que elas permitem uma vista da várzea no fundo. Enquanto na pintura do IMS o povoado era um suplemento da paisagem, nessa, a várzea foi acrescentada a uma cena que retrata a composição étnica e o modo de vida descontraído da população local, entretida num misto de dança e comércio.

Duas outras pinturas, datadas de 1657 e 1658 e também similares em tamanho, fizeram companhia uma à outra na coleção de um nobre dinamarquês por quase 200 anos, até serem separadas no fim do século XX (CL 34 e 35). Ambas são paisagens de várzea. Uma delas mostra um povoado no plano intermediário, demonstrando a mesma conexão apontada anteriormente. Na outra, um engenho se insere harmonicamente na paisagem, indicando o elo entre a terra fértil da várzea e a produção de açúcar. O engenho poderia ter sido colocado em primeiro plano, tal como o povoado no quadro mencionado anteriormente. É o que ocorre em Engenho de açúcar, no Statens Museum de Copenhague, antes na Coleção Real do Castelo de Kronborg (CL 47). Na obra, a paisagem de várzea é adicionada a uma representação proeminente do “triângulo rural”, com a casa-grande, a capela e o engenho. As pinturas que retratam com destaque engenhos de açúcar (sempre com moinhos movidos a água, nunca, em suas pinturas conhecidas, puxados a boi) mostram cenas de trabalho intensivo, contrastando com a atmosfera mais desprendida nas cenas de povoado e o indolente intermesclar de grupos étnicos nas paisagens de várzea.

Vários quadros com um engenho de açúcar ou um povoado como tema principal têm paisagens de várzea no fundo. Isso mostra que, no tratamento dos seus três temas prediletos, Post geralmente compunha variações sobre um único tema: o Brasil como a terra do engenho. Por quase 40 anos, ele retornaria diariamente em imaginação à várzea contígua ao Recife, ora enfocando a paisagem com pessoas na estrada, ora o engenho, ora o povoado. Se no Recife ele se esforçou, em suas pinturas topográficas, para abranger toda a conquista holandesa – do Rio Grande, ao norte, até o rio São Francisco, ao sul -, em Haarlem, ele se concentrou na região bem específica em que passou a maior parte do seu tempo no Brasil e que melhor representava o caráter fascinante do país e de sua gente. Para ele, a terra do engenho representava um tipo de sociedade inteiramente novo: não a que foi construída ao longo de vários séculos pelos nativos, mas a engendrada nas décadas anteriores por gente de três continentes – o americano, o africano e o europeu -, mediante a combinação das habilidades e dos recursos de seus países de origem. Como diríamos hoje, a terra do engenho foi fruto de globalização.

Ainda assim, pode-se argumentar que Post continuou a representar aquela sociedade inteiramente nova e fascinante da mesma maneira que ele fazia durante sua permanência no Brasil. Na sua visão, enquanto esteve no país e posteriormente, a colônia agrária era o sinal manifesto de um projeto civilizador em andamento. O meio inóspito e o modo de vida primitivo e desregrado estavam sendo substituídos por terra cultivada e por um modo de vida caracterizado por trabalho e lazer disciplinados. O comportamento pagão estava se rendendo à moralidade cristã. Os povoados, com suas igrejas, e os engenhos, com suas capelas, nas várzeas, corporificavam essa transformação social promovida pela colonização europeia. No mesmo ano da obra no IMS, Post pintou um quadro que se referia à situação pré-colonial. Numa paisagem desprovida de quaisquer edificações que indicassem um modo de vida organizado, vemos indígenas nus e cabeludos caçando emas e veados (CL 100). O contraste entre selvageria e civilidade, um dos conceitos básicos utilizados pelos colonizadores europeus para formular seu empreendimento além-mar, ainda estava nitidamente presente na mentalidade de Post mesmo depois de ele ter deixado a Colônia. Quando dispostas lado a lado, uma paisagem com indígenas nus caçando e uma paisagem de várzea com um engenho perto de um povoado e de um grupo de brancos, negros e indígenas trajados decentemente ilustram com perfeição a concepção de Post sobre a sociedade remota na qual vivera por sete anos.

O conflito social, a opressão e a exploração, que certamente estavam presentes na colônia agrária, estavam ausentes nas representações de Post, assim como o abrasante calor dos trópicos. As nuvens no céu e a abundância de água das paisagens de várzea assinalam que os trópicos não eram a zona tórrida da geografia clássica. As árvores nunca estão sem folhas, apresentando o que seria um território de eterna primavera. Frutos suculentos crescem em abundância, tal como o coqueiro e o mamoeiro dão a entender. Indígenas, negros e brancos mantêm relações cordiais. O Brasil é retratado como um locus amoenus, um lugar aprazível. Em virtude dessas características e do fato de que são criações da imaginação, muito embora compostas com elementos realistas, as paisagens de Post foram associadas à Arcádia ou ao Paraíso, às bem-aventuradas terras da imaginação literária ou religiosa.

Prefiro uma abordagem alternativa acerca dessas características, baseada na premissa de que Post desejava expressar não só as coisas observadas por ele, mas também sua interpretação delas. Desde o final do século XIX, holandeses, ingleses e franceses que tinham algum conhecimento do colonialismo espanhol e português na América sabiam do modo extremamente brutal com que era tratada a população nativa e das crueldades perpetradas contra os escravos negros das lavouras. As gravuras de Theodor de Bry incluídas na História do Novo Mundo [Historia del Mondo Nuovo], de Girolamo Benzoni (1595-1597), haviam ressaltado essas abominações. Benzoni era amplamente lido, de modo que Post, ou seu círculo de conhecidos, provavelmente era familiarizado com essa visão do colonialismo ibérico no Novo Mundo. Considero plausível que Post quisesse mostrar que havia um outro lado da história. Não obstante os crimes cometidos no início da colonização e de quando em quando repetidos dali em diante, no devido tempo, e sob uma boa gestão, a sociedade colonial pôde desenvolver um modo de vida mais humano. Ele acreditava ter visto sinais disso no que observara nos distritos das lavouras. Nas pinturas de paisagens de várzea, de engenhos de açúcar e de cenas de povoados, Post representou a sociedade agrária brasileira como um exemplo de progresso social gradual.

 

BIBLIOGRAFIA

CORRÊA DO LAGO, Pedro e Bia. Frans Post, 1612-1680: catalogue raisonné. Milão, 2007.

VIEIRA, Daniel de Souza Leão. Topografias imaginárias: a paisagem política do Brasil holandês em Frans Post, 1637-1669. Leiden, 2010.

BOOGAART, Ernst van den. “A well-governed colony: Frans Post’s illustrations in Caspar Barlaeus’s History of Dutch Brazil“. The Rijksmuseum Bulletin, v. 59, n. 3, 2011, pp. 236-269.

 

ILUSTRAÇÕES

CL refere-se ao livro de Pedro e Bia Corrêa do Lago citado na bibliografia. Os números se referem à numeração das pinturas adotada pelos autores, não à paginação do livro.

Frans Post, Paisagem de várzea, 1654. CL 23

Frans Post, Feira num povoado, 1654. CL 24

Frans Post, Paisagem de várzea, 1657. CL 34

Frans Post, Paisagem de várzea, 1658. CL 35

Frans Post, Engenho de açúcar, 1660. CL 47

Frans Post, Indígenas caçando, 1667. CL 100

Frans Post, Paisagem de várzea, 1667. CL 101

Theodor de Bry, A cruel punição de escravos negros em São Domingos, 1595

Theodor de Bry, Escravos negros labutando num canavial em São Domingos sob o sol abrasador, 1595

Ernst van den Boogaart (1943), historiador holandês, mora em Amsterdã. Suas publicações tratam principalmente da expansão holandesa no Atlântico durante o século XVII

Tradução do inglês: Alexandre Morales

 

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