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Frisch e as primeiras impressões da Amazônia

15 de outubro de 2019

Na segunda metade do século XIX, os registros visuais feitos pelas missões artísticas e científicas estrangeiras que passavam pelo Brasil ecoavam de forma intensa na Europa, ávida por conhecer um pouco mais sobre aquela grande extensão de terra exuberante, habitada por povos indígenas e animais exóticos. Nesse contexto, nada melhor do que uma expedição à (quase) intocada Amazônia para abastecer a curiosidade dos europeus e, mais fantástico ainda, com registros fotográficos, modernidade que vinha se desenvolvendo a largos passos desde as primeiras décadas daquele século. Foi com esse objetivo que o suíço Georges Leuzinger comissionou, em 1867, a viagem que resultaria nas primeiras fotografias conhecidas da flora, fauna e habitantes da região, feitas pelo alemão Albert Frisch (1840-1918), funcionário da oficina fotográfica de Leuzinger no Rio de Janeiro. A série de 98 pranchas acaba de ser comprada num leilão da Sotheby’s, em Nova York, pelo Instituto Moreira Salles, que já abrigava em seu acervo aproximadamente 40 imagens de Frisch feitas na mesma expedição, realizada entre 1867 e 1868.

A aquisição do conjunto completo (o único no Brasil) tal como editado e comercializado por Leuzinger em 1869 é importante não apenas pelo seu formato – as imagens, montadas em suporte de papel-cartão, trazem legendas detalhadas identificando populações indígenas, plantas, animais e cenas cotidianas –, como também porque ajuda a aprofundar as pesquisas do IMS sobre o autor, que durante muito tempo permaneceu uma incógnita para os especialistas em fotografia. Foi apenas em 2000, quando o instituto recebeu em doação um conjunto de cartas, documentos e fotografias da família Leuzinger – o IMS tem a maior coleção de trabalhos do fotógrafo e editor – que se confirmou que o A. Frisch creditado nas imagens da Amazônia era mesmo o alemão designado para acompanhar a expedição que levou à região o engenheiro Joseph Keller e seu filho Franz Keller-Leuzinger, também fotógrafo, desenhista e genro do suíço.

Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS, lembra que a série foi projetada e realizada como um produto editorial, especialidade de Leuzinger, exímio fotógrafo e experiente editor, que muito fez pela fixação e difusão da imagem do Rio de Janeiro oitocentista. Em 1865, ele inaugurou a Oficina Fotográfica da Casa Leuzinger no Rio, onde chegou em 1832, publicando uma série de cenas icônicas da cidade, que enchiam os olhos de moradores e viajantes. Também contribuiu com imagens da capital do Império e arredores para projetos científicos de dois naturalistas importantes: A journey in Brazil, do suíço naturalizado norte-americano Louis Agassiz, que entre 1865 e 1866 percorreu várias regiões do país, incluindo a Amazônia, e a Flora Brasiliensis, estudo grandioso da botânica nacional, feita pelo alemão Carl Friedrich Philipp von Martius e seu colega Johann Baptist von Spix, publicado em 40 volumes entre 1840 e 1906.

Ciente do grande interesse de antropólogos e botânicos na Amazônia, Leuzinger percebeu e investiu também no potencial comercial das imagens para um público mais amplo, leigo, mirando no mercado internacional, como comprovam as legendas em francês das fotos. O que não interfere na qualidade etnográfica que de fato a empreitada teve. “Ela foi e ainda é um registro importante sobre a região naquele momento”, afirma Burgi, destacando, porém, a necessidade de uma análise mais profunda das imagens.

Muitas vezes Frisch fotografava seus modelos em um fundo neutro, e depois os inseria nos cenários de natureza registrados separadamente, combinando as duas imagens para alcançar um resultado que ele considerava mais próximo da realidade que desejava mostrar. “O conjunto flutua entre registros que têm força pela objetividade direta, como a imagem de uma família diante de sua casa em Manaus, que considero a melhor, e outros que precisamos estudar mais. O esforço diante dessa série é separar o que é informação pura, objetiva, da manipulação de imagens”, observa Burgi. “Mesmo ele intervindo e fazendo colagens, essas informações e registros continuam relevantes, tanto para a compreensão do processo editorial da época, como também para quem está estudando hoje determinada população indígena fotografada na série”.

É preciso lembrar que as condições nas quais Frisch realizava seu trabalho eram difíceis. Depois de acompanhar a família Keller até Manaus, o fotógrafo separou-se do grupo para percorrer o rio Solimões, na época conhecido como Alto Amazonas, e o Rio Negro, partindo de Tabatinga, na região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, até Manaus. O feito está documentado no folheto produzido em 1869 para divulgar a série de 98 imagens, descoberto apenas em 2013 no acervo da Biblioteca Nacional. Expédition Photographique sur le Solimões ou Alto Almazonas et Rio Negro, fait pour compte de G. Leuzinger… par Mr. A. Frisch, descendant le fleuve dans un bateau avec 2 rameurs, depuis Tabatinga jusqu'à Manáos (Expedição fotográfica no Solimões ou Alto Amazonas e Rio Negro, realizada por G. Leuzinger ... pelo Sr. A. Frisch, descendo o rio em um barco com 2 remadores, de Tabatinga a Manaus). Ou seja, o alemão navegou milhares de quilômetros numa pequena embarcação com apenas dois ajudantes, levando um laboratório ambulante para realizar um processo bastante complexo de fotografia e revelação. O método era o do colódio úmido, demorado, com negativos feitos em pesadas chapas de vidro que poderiam ser danificadas por muitos motivos, desde a composição errada das químicas usadas na revelação, até a própria destruição dos originais na viagem entre Manaus e o Rio de Janeiro.

Se Frisch decidiu mesclar elementos para suprir deficiências técnicas ou para satisfazer o imaginário europeu sobre a Amazônia é incerto. O fotógrafo não chega a registrar cenas dentro da floresta fechada, circula em áreas mais periféricas, visíveis nas imagens que mostram alguma devastação na região. “Ele percorre áreas já sendo abertas pelos mecanismos de exploração do capital, mas há uma sugestão nas legendas, na forma de apresentação do projeto, que não dá conta da realidade que você está vendo. Frisch está trabalhando claramente com índios que já estão num processo de aculturação, mas são descritos por ele como ‘selvagens’, por exemplo. É uma série que confunde um pouco a documentação da ocupação de território com a imagem de uma expedição de caráter antropológico de primeiro contato, desbravador, que não era”.

As imagens manipuladas e retocadas não atendiam, é sabido, aos rigorosos parâmetros científicos dos estudiosos, que exigiam para suas pesquisas a observação direta, sem interferências posteriores. Ainda assim, as fotos de Frisch foram consideradas documentos preciosos que atestavam, já naquele momento, a luta dos povos indígenas como Tucunas, Miranhas, Caixanas e outros para sobreviver ao processo de ocupação que rasgava a floresta. Cópias do conjunto se espalharam por várias coleções no mundo inteiro, e certamente forneceram informações importantes para cientistas de outras épocas. As legendas minuciosas de espécies botânicas descrevem seu uso, sua floração, seu sabor (o açaí produz uma bebida “muito refrescante”, anota ele).

Uma das provas do interesse posterior pelo trabalho é um álbum, feito em 1930 por um dos filhos de Frisch, Eberhard, no qual ele faz uma espécie de inventário da passagem do pai pelo Brasil, reunindo 109 reproduções fotográficas, sendo 106 de Frisch, incluindo algumas do conjunto amazônico. O documento foi feito provavelmente a partir do pedido de um botânico brasileiro que integrava a Comissão Rondon (a carta de 1930 faz parte do álbum), querendo mais informações sobre a obra de Frisch.

O álbum, assim como outras duas preciosidades – um livro com a história da família, publicada em 1942, contendo um pequeno relato autobiográfico do fotógrafo; e uma edição comemorativa dos 50 anos da casa tipográfica fundada por Frisch em 1875, poucos anos depois de ter voltado à Europa e se especializado nas artes gráficas –, foram adquiridas pelo IMS no começo de 2006, resultado das intensas buscas, no Brasil, na Alemanha e em outros países, por mais informações sobre Christoph Albert Frisch, nascido na Baviera em 1840. As buscas foram capitaneadas principalmente pelo alemão Frank Stephan Kohl, que em 2005 começou a trabalhar como pesquisador associado no IMS, e fez de Frisch sua tese de doutorado, anos mais tarde. Kohl foi o responsável por localizar Klaus Frisch, neto do fotógrafo, proprietário dos álbuns comprados pelo instituto. Na edição sobre Leuzinger que fez parte da série Cadernos de Fotografia Brasileira, publicada pelo IMS em 2006, há um longo e detalhado texto de Kohl sobre Frisch e sua relação com a oficina de Georges Leuzinger, fechada em meados da década de 1870, depois que o fotógrafo alemão, seu principal funcionário, volta para a Europa.

Retrato do fotógrafo Albert Frisch. Reprodução do livro Albert Frisch, Graphische Kunstanstalt, Druckerei und Verlag 1875-1925 / Acervo IMS
Retrato do fotógrafo Albert Frisch. Reprodução do livro Albert Frisch, Graphische Kunstanstalt, Druckerei und Verlag 1875-1925 / Acervo IMS

 

Frisch estava trabalhando como aprendiz de uma casa de litografia em Paris quando decidiu deixar o continente europeu, em 1861, para se aventurar na América Latina como comerciante de imagens religiosas. Se instalou em Buenos Aires, mas o negócio das vendas naufragou e ele ganhou a vida como professor particular, até que se tornou amigo de um fotógrafo alemão e começou a trabalhar nessa área. Mudou-se para o Paraguai para abrir seu estúdio, incentivado pelo próprio Solano López, ditador que comandava o país. Com a Guerra do Paraguai, ele veio para o Brasil, e provavelmente em 1865 já ingressou na Casa Leuzinger.

No final de 1869 ele é enviado pelo próprio patrão para se especializar em colotipia na Alemanha com o fotógrafo Joseph Albert, responsável pelo aprimoramento da técnica. Frisch, porém, não retorna mais ao Brasil. Chega a ir fotografar em Nova York, mas em 1872 volta para a Alemanha, onde abre seu estúdio e vai se especializando em artes gráficas. Em 1875, inaugura o respeitado Kunstanstalt Albert Frisch, especializado em reproduções de obras de arte de altíssima qualidade, trabalhando inclusive para o Vaticano.

Curiosamente, sua passagem pelo Brasil e a viagem à Amazônia são reduzidas, em seu breve relato autobiográfico, a uma mera linha. “É como se tivesse sido apenas um aventura da juventude”, conta Burgi.