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Henri Ballot, aviador

09 de outubro de 2018

Ele começou a voar aos 12 anos e, aos 16, depois de muito economizar o dinheiro da merenda escolar para comprar a gasolina necessária nos aeroclubes franceses, tirou seu brevê, acompanhando os passos do pai, dono de um dos 12 primeiros certificados de piloto de avião concedidos no mundo. Conheceu os grandes aviadores de sua época, como Antoine de Saint-Exupéry, Henri Guillaumet, Jean Mermoz. Durante a Segunda Guerra, juntou-se à resistência francesa e combateu bravamente durante quatro anos pela French Free Air Force (FFAF). Não, não estamos falando de um famoso ás da aviação, e sim do franco-brasileiro Henri Ballot (1921-1997), que se tornou um ás do fotojornalismo no país no relativamente curto período em que se dedicou à profissão. Entre 1949 e 1968, integrando a equipe da revista O Cruzeiro, registrou histórias memoráveis. O coração do fotógrafo, porém, sempre bateu mais forte nas alturas: até um mês antes de sua morte, aos 76 anos, ele ainda pilotava seu ultraleve.

“Ele era mais piloto do que fotógrafo”, afirma sua viúva, Carmen Chateaubriand Ballot, num longo depoimento concedido em 2015 ao IMS, guardião de aproximadamente 13 mil imagens feitas pelo fotógrafo para a Cruzeiro. É verdade que a paixão pelos céus só voltaria a ser despertada na década de 80, muitos anos depois da chegada de Ballot ao Brasil, terra de sua mãe, e de aposentar sua câmera. Enquanto esteve a serviço do fotojornalismo, porém, foi um profissional inquieto, curioso, que “não gostava de ficar parado”, conta Carmen, também jornalista e dona de um espírito tão aventureiro quanto o do marido.

Entre as muitas reportagens internacionais que fez para a Cruzeiro – terremoto no Chile, guerra no Líbano, a longa doença do papa Pio XII... – uma delas marcou profundamente a trajetória de Ballot. Em 1961, ele foi para os Estados Unidos tentar encontrar uma família vivendo em condições insalubres em Nova York. De lá, voltou com imagens contundentes dos imigrantes porto-riquenhos Gonzalez, vivendo numa área depauperada perto de Manhattan, para ilustrar um texto igualmente contundente assinado por ele mesmo. Foi uma resposta imediata, saturada de nacionalismo, dada pela Cruzeiro como troco pela exposição da vida miserável do menino Flávio da Silva e de seus familiares numa favela carioca, feita poucos meses antes pelo fotógrafo Gordon Parks para a revista americana Life. A briga editorial, que custou ao brasileiro a proibição de sua entrada nos EUA, foi detalhada na mostra O caso Flávio - O Cruzeiro x Life: Gordon Parks no Rio de Janeiro e Henri Ballot em Nova York, apresentada no IMS Rio entre fevereiro e setembro de 2018.

Nas andanças pelo Brasil, quase sempre ao lado do repórter Jorge Ferreira, o fotógrafo fez os registros fundamentais dos primeiros contatos dos irmãos Villas-Bôas com as tribos indígenas do Xingu. Ballot viajou entre 1952 e 1957 com Leonardo, Cláudio e Orlando, e tornaram-se amigos. Há ainda as grandes séries sobre a chegada dos retirantes em São Paulo, o carnaval no Rio de Janeiro, a pobreza da população às margens do Rio São Francisco.  Ao lado de outros importantes nomes do fotojornalismo da época, como Luciano Carneiro, José Medeiros – ambos também presentes no acervo do IMS –, Luiz Carlos Barreto e Jean Manzon, Ballot, filho de pai francês e mãe brasileira, fez história na publicação que, em seu período áureo, chegou a ter um milhão de exemplares circulando no país. Após a morte de Assis Chateaubriand (tio de Carmen) em 1968, o semanário ilustrado foi perdendo o brilho, até encerrar definitivamente as atividades em 1985.

 

Curioso é que, de certa forma, foi a aviação que levou Ballot ao fotojornalismo. Em 1945, quando voava pela FFAF, foi abatido pelos alemães e caiu, ferido, em território dominado pelos americanos. Acordou depois de um coma de quatro meses num hospital em Denver, nos EUA, tendo como colega de quarto um fotógrafo amador. Durante a longa convalescência – Ballot passaria dois anos no hospital –, ele aprendeu com o vizinho de enfermaria os fundamentos da profissão que abraçaria algum tempo depois.

Nascido em Porto Alegre e criado na França desde os dois anos, Ballot retornou à Europa após sua recuperação, com a guerra já terminada. Um período difícil, com feridas difíceis de cicatrizar na sociedade: na pequena cidade em que ele crescera, por exemplo, o prefeito, acusado de colaborar com os nazistas, acabou fuzilado. Como muitos jovens naquele período, o rapaz decidiu deixar o continente combalido em busca de um futuro melhor. E seguiu para o Brasil, abandonando assim a vida de piloto durante muito tempo.

Em 1949, logo que chegou a São Paulo, começou a trabalhar em O Cruzeiro. “Ele não era necessariamente engajado, da perspectiva da esquerda, mas também não era um homem de direita. Era um europeu extremamente interessado nas questões do país, queria conhecer o Brasil profundo e aí começa a viajar, tornando-se próximo dos irmãos Villas-Bôas”, diz Sergio Burgi, coordenador de fotografia do IMS e um dos curadores da mostra O Caso Flávio. Ele também observa que, desde aquela época, Ballot já mostrava interesses que iam além da fotografia. Em 1957 ele construiu, dentro de um prédio no centro de São Paulo, um pequeno veleiro. A “casquinha de noz”, como brinca Burgi, foi retirada pela janela e levada para o litoral. A bordo dela, e novamente ao lado de Jorge Ferreira, foi navegando de Santos até Angra dos Reis, compondo para a Cruzeiro uma extensa reportagem sobre os caiçaras. Em seu depoimento, Carmen também lembra que o marido já havia construído um barquinho, quando tinha 11 ou 12 anos, para descer um rio e acampar perto de casa, na França.

 

O barquinho que Ballot construiu para percorrer o litoral brasileiro em 1957. Arquivo Henri Ballot / Acervo IMS
O barquinho que Ballot construiu para percorrer o litoral brasileiro em 1957. Arquivo Henri Ballot / Acervo IMS

 

Luiz Carlos Barreto, um dos mais importantes produtores cinematográficos do país, em plena atividade aos 90 anos – ele começou a investir no cinema enquanto ainda trabalhava na Cruzeiro –, confessa que não sabia da paixão do fotógrafo pela aviação. Porém, recorda-se perfeitamente da fascinação pelos barcos, e daquele construído especialmente para a reportagem. Lembra-se também da convivência muito próxima com Ballot durante a cobertura da Copa do Mundo da Suécia, em 1958, na equipe que incluía também o jornalista Armando Nogueira (1927-2010).

O produtor já estava na revista quando o fotógrafo chegou. “Ele foi o segundo francês a entrar na Cruzeiro. O primeiro foi Jean Manzon, e o Marcel Gautherot (outro destaque do acervo do IMS) seria o terceiro. Era a legião francesa”, brinca Barreto. A mais perene lembrança dessa amizade, contudo, é de natureza romântica: ele revela que foi uma espécie de padrinho do casamento do fotógrafo. “Carminha era uma pessoa muito querida, convivia muito comigo e com a Lucy (mulher de Barreto), e a apresentei a Ballot. Praticamente fomos os cupidos desse amor que durou tanto”.

O talento para a engenharia naval demonstrado desde a mocidade seria precioso na vida de Ballot e de sua família alguns anos mais tarde. Depois de sair da Cruzeiro, ele chegou a trabalhar no jornal Última Hora, convidado por Samuel Wainer para dirigir o laboratório fotográfico. No início da década de 70, porém, ele e Carmen decidiram partir para outras aventuras. Com os filhos Eduardo e Helena ainda pequenos (Ballot teve outra filha, Veronique, do primeiro casamento), mudaram-se para a Ilha Grande, no litoral fluminense, e lá ergueram, tijolo por tijolo, a própria casa. Para sobreviver, o que fez Ballot? Um pequeno estaleiro, onde construía pequenos barcos. Em 1985, numa das grandes chuvas que costumam assolar a região, a família viu todo o investimento rolar literalmente por água abaixo. Não sobrou nada, nem da casa, nem do estaleiro.

Uma nova mudança aconteceu, agora para outro ponto da ilha.  E foi ali que o piloto de avião adormecido no fotógrafo acordou. O dia, Carmen nunca esqueceu: foi quando o casal recebeu a visita do velho amigo Armando Nogueira, que chegou pilotando um ultraleve. Foi o que bastou para o fotógrafo comprar o seu, e recomeçar a voar. “Tiramos muitas fotos aéreas da área, eu também voava. Vendíamos para ganhar algum dinheiro”, recorda ela.

Henri Ballot com seu ultraleve em Santa Catarina, onde morou até sua morte, em 1997. Arquivo Henri Ballot / Acervo IMS

Depois de 19 anos na Ilha Grande, chegou a hora dos Ballot botarem o pé na estrada. De verdade. A família seguiu de carro para o Sul do país em busca de algum aeroclube que pudesse dar ao fotógrafo o documento necessário para que pudesse continuar a pilotar – sem voar desde o acidente durante a guerra, ele não tinha mais o brevê. Nessa jornada, chegaram a descer até Porto Alegre, parando em vários lugares no meio do caminho, e acabaram ficando na cidade de São José, em Santa Catarina. “Eles tinham um aeroclube pequenininho, com meia dúzia de caras que também não podiam mais passar no exame para voar!”, conta Carmen, às gargalhadas. O próprio presidente do aeroclube já era mais velho. “Ele era o diretor do hospital regional de São José, evidente que dava o atestado de saúde para todo mundo”.

Novamente habilitado, morando numa casa ao lado do aeroclube, Ballot equipou com rodinhas o ultraleve “com motor de Fusca”, que em Angra tinha flutuadores de hidroavião, e passou a voar “todo santo dia”, segundo Carmen. “Ele acordava sempre às 7h, tomava café e seguia para lá. Voava para todo lado. E voou até morrer”.