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Hotel Gran Corona, 1962

22 de junho de 2021

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Nesta edição, a escritora Giovana Madalosso se inspirou em uma imagem de Otto Stupakoff, pioneiro da fotografia de moda no Brasil, cuja obra completa - cerca de 16 mil negativos - integra o acervo do IMS desde 2008.

Otto Stupakoff. Hotel St. Regis. Nova York, 1972 (Acervo IMS)

Não há nada atrás da cortina. Fui eu que sugeri que ela se inclinasse para a foto. Estava atrás de boas imagens, que me rendessem uma exposição individual e alguma grana. Por aqueles dias, andava pela cidade fotografando uns fodidos em suas vidas fodidas e resolvi parar para um café. Foi ela quem me serviu.

Enquanto ela tirava o espresso com leite, observei sua bunda com meus olhos físicos e com o olho mecânico que sempre levo junto ao peito, e talvez por isso tão conectado ao que sinto: muitas vezes só entendo porque fiz uma foto depois de fazê-la. Teria feito uma naquele momento. Meu indicador coçou quando a vi tirando meu café, esculpindo a espuma do leite com dedicação, como se sua vida dependesse da perfeição daquela xícara. Agradeci e comentei que ela devia amar o que fazia. Falou que era justamente o contrário. Detestava o emprego, mas leu numa revista que se entregar de corpo e alma ao trabalho faria com que o tempo passasse mais rápido e ela se sentisse digna. Tem funcionado?, perguntei. Não muito, disse.

Tomei o café e pedi outro, decidido a prolongar a conversa. Falei que dessa vez ela não precisava caprichar tanto, eu estava atrás da droga, se fosse tragável para mim já estava bom. Ela disse que precisava manter o método e em seguida, com a mesma dedicação, me serviu a outra xícara. Depois apontou para o meu terceiro olho, depositado sobre o balcão. Perguntou se era o meu instrumento de trabalho. Balancei afirmativamente a cabeça. Quis saber se eu gostava do que fazia. Muito, respondi, constrangido com a minha sorte.

Conversamos mais um pouco, sobre o meu trabalho, a cidade, o fato de eu não ser dali. Então ela se despediu e foi tirando o avental, estava acabando o seu turno. Olhei para o relógio atrás dela: eram onze da manhã. Perguntei a que horas ela tinha entrado. Às cinco, me disse, explicando que sempre limpava o salão para abrir às seis. Falei que ela precisava de um espresso duplo. Será que não queria se sentar ao meu lado? Disse que não podia, dali ia para a casa de uma senhora, fazer faxina. Foi coisa do meu terceiro olho, porque não pensei para propor: dá o cano nela que eu te pago a diária. Ela parou o que estava fazendo. E vai pagar pra quê, pra beber café comigo? Acho que baixei os olhos para a câmera. Quero te fotografar.

Alguns minutos depois, caminhávamos rua abaixo. Perguntei se tinha alguma coisa que ela queria fazer. Que gostasse de fazer. As fotos aconteceriam pelo caminho. Olhou em volta e apontou para um hotel. Disfarcei minha surpresa, e também minha satisfação, focando o rosto na fachada. Era um lugar decadente. E ainda bem, eu não teria dinheiro para pagar coisa melhor.

Passamos pela recepção. Peguei a chave de um apartamento no primeiro andar. Ainda guardo uma foto dela subindo a escada, a meia-fina desfiada na batata da perna. Abri a porta meio sem jeito, não imaginava que meu convite daria naquilo. Apontando para as garrafinhas sobre o frigobar, perguntei se ela gostaria de tomar alguma coisa, eu também tomaria, para descontrair. Aceitou o uísque. Virei o meu e me escondi atrás da lente: ela bebendo e olhando pela janela, ela na frente do espelho, ela meio bêbada sorrindo para mim.

Trepamos em cima da colcha desbotada. Depois que gozamos, deitamos lado a lado. Ela virou para mim e disse que aquilo tinha sido melhor do que lavar privada. Falei que nunca tinha me sentido tão lisonjeado, e demos risada. Em seguida ela se levantou, foi ao banheiro. Perguntei se podia fotografá-la de calcinha e sutiã. Disse que sim, desde que não mostrasse o rosto. Era mãe de um menino pequeno, não queria que um dia ele… E parou por aí. Em seguida penteou os cabelos, deixou que eu fizesse mais algumas fotos.

Não quis abusar da sua boa vontade. Pensei que talvez quisesse ir embora para ficar com o menino. Agradeci pela sessão e lhe dei o dinheiro. Ela perguntou se podia continuar no quarto depois que eu fosse embora. Eu disse que sim. Ela tirou a colcha e entrou embaixo das cobertas. Quando eu estava saindo, me pediu que fechasse as cortinas.

Giovana Madalosso nasceu em Curitiba, em 1975, e vive em São Paulo. É autora de A teta racional (2016, finalista do Prêmio Biblioteca Nacional), Tudo pode ser roubado (2018, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio (2020).