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João da Baiana em dois tempos

15 de janeiro de 2019

Três fotos de João da Baiana no acervo do Instituto Moreira Salles. Que contraste. A colorida é da coleção David Zingg. As outras duas, do arquivo dos Diários Associados no Rio, mostram João em 1972 no Retiro dos Artistas, na Pechincha, em Jacarepaguá. Destas, uma é de agosto, a outra de outubro. Na primeira, João está visivelmente constrangido ao ser surpreendido pelo fotógrafo nesse desmazelo, sentado num banco ou caixa escura, com um trapo feio pendurado do bolso do pijama desabotoado. Na outra, está sim abotoado e procurou uma cadeira de braços. Só que agora, em vez de constrangido, se mostra hostil, claramente contrafeito com esta segunda invasão de privacidade, e ostensivamente vira a cara à máquina. Orgulho.

As fotos do jornal não foram publicadas. Só datadas, nem identificadas no verso estão. Saberiam os cuidadores quem era aquele interno orgulhoso? Terão dito ao(s) fotógrafo(s) quem ele(s) estava(m) fotografando? Ao repórter? Este, se entre a Pechincha e a Rua do Livramento não se esqueceu, terá repetido a informação ao chefe de reportagem, e este ao arquivista que a ignorou?

João da Baiana era orgulhoso. Era vaidoso. Pixinguinha usa esta palavra mesmo. A propósito de Aí, seu Pinguça, polca-choro, faixa 4 do lado B do LP Gente da antiga, de 1968, diz a Hermínio Bello, na contracapa, que esse “seu” Pinguça era um festeiro notório de outros tempos, “vaidoso como o João”, sempre com uma flor na lapela. Com um cravo na lapela está João na capa do disco. Linda foto em preto e branco, impressa em sépia, de Pedrinho (filho de Vinicius) de Moraes. Todo mundo de branco: Clementina e Pixinguinha com o sax, de pé, João, sentado um plano à frente, paletó imaculado, engravatado no último plastron que a cidade viu.

Capa de disco: foto de Pedro de Moraes

Dois anos depois, estão Pixinguinha e João na Cidade, na Travessa do Ouvidor, em frente à whiskeria Gouveia, onde Pixinga batia o ponto diário. Posando ambos para David Zingg por encomenda da editora Abril Cultural, para produzir o cartaz de banca de jornal do lançamento da História da Música Popular Brasileira em fascículos quinzenais. Ao todo 48, até 1972, cada qual acompanhado de um 33 rotações de 4 faixas cada lado. Número 1, Noel; 2, Pixinga; 3, Caymmi; 4, Chico etc.

Zingg e os dois. Dia nublado, sem sombra chapada, ideal para foto ao ar livre. Os dois de chapéu, Pixinga, de piteira, planando alto em sua grande bondade, e João, hoje de cinza, com o cravo, o plastron e sapatos bico fino de verniz, – abotoados! “Vaidoso como o João.” Botaram – por sugestão de Zingg? – um barril de madeira no meio da rua. Nássara, quando foi fazer a foto da página 11 de Nássara desenhista (Funarte, 1985), na esquina de Bitencourt da Silva com Rio Branco, onde fora o Café Nice, sacou do bolso uma folha de jornal e estendeu-a no banco de praça em que se aboletou. Mesmíssima providência tomada por João em relação ao barril – gente da antiga –, não se vão agora macular os fundilhos ao contato de um cisco qualquer...

Compositor de obra reduzida, João da Baiana, nascido em 1887, caçula e único carioca dos doze filhos de um casal baiano, era antes um notável percussionista, mestre em invenções “domésticas” como o prato-e-faca, como mostra um video na exposição O Rio do samba, no Museu de Arte do Rio da praça Mauá. E é tido como o introdutor do pandeiro no samba, instrumento até ali empregado apenas em orquestras. E, a partir dali, como na época o próprio samba, considerado coisa de malandros, proibido e perseguido. É conhecida a anedota de João sendo chamado ao Senado, na época funcionando na Rua Moncorvo Filho, por ninguém menos que a todo-poderosa eminência parda da república na época, o caudilho gaúcho José Gomes Pinheiro Machado. O senador sentira falta, numa festa em seu palácio do Morro da Graça, em Laranjeiras, daquele “rapaz do pandeiro” e lhe pedia o motivo da ausência. E era, o motivo, que o instrumento lhe fora confiscado e rasgado pela polícia nas Festas da Penha. O gaúcho encomendou então um pandeiro novo no endereço indicado por João, O Cavaquinho de Ouro da Rua da Carioca, e lhe fez entrega do presente com uma dedicatória do lado interno da pele. Luxuoso laissez-passer que livrou o músico de todo futuro incômodo com a “dura”.

Com o tempo, veio-lhe pelo menos o reconhecimento. Há dias, o Barão do Pandeiro me mandou o seguinte depoimento de uma autoridade como Radamés Gnattali em sua Autobiografia:

(...) o jazz, por exemplo, é muito baseado no piano, bateria, contrabaixo e guitarra. Eu então disse: para fazer uma boa orquestra de música brasileira, precisamos ter uma boa base. Então tinha dois violões, cavaquinho, às vezes três cavaquinhos, conforme o arranjo que eu queria (...) tinha uma bateria espetacular, que era o Luciano [Perrone], o João da Baiana no pandeiro" - e aqui o mestre se detém: "o pessoal que toca pandeiro por aí tinha que ouvir o João da Baiana para ver como se toca pandeiro" - e segue: "o Heitor dos Prazeres, que tocava caixeta, prato-e-faca, e o Bide [Alcibíades Barcelos] que tocava ganzá. Era uma massa muito boa."

No depoimento de 1966 ao Museu da Imagem e do Som, João conta que ainda tinha em casa a relíquia com o autógrafo de Pinheiro Machado, mas já toda “com esparadrapo e azinhavre”. Em 1972, passados seis anos do depoimento, quatro do disco com Quelé e Pixinga, e dois da foto em frente ao Gouveia, viúvo, sem filhos, recolhido aos 85 anos ao Retiro dos Artistas, não tinha mais pandeiro, nem sapatos abotoados, nem cravo, nem plastron, nem vaidade. Só orgulho.

Naquele mesmo 1972, João pode ter tido um outro aborrecimento, se alguém lhe mostrou o último fascículo, 48, daquela série da Abril, dedicado a Donga e Os Primitivos. Nele aparece o pioneiro num retrato infame, sob todas as luzes impublicável, de minha lavra desastrada, primeiro dinheiro que ganhei na vida com desenho. Uma vergonha.

Desenho de João da Baiana por Cássio Loredano

Menos de dois anos depois, dia 12 de janeiro de 1974, João Machado Guedes saiu atrás de seu camarada Alfredo da Rocha Viana Filho, que partira onze meses antes.

Cássio Loredano é caricaturista e consultor do IMS.