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Língua morta

03 de julho de 2020

A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Nesta edição, o escritor Michel Laub se inspirou em uma imagem do fotógrafo alemão Moritz Lamberg, que produziu diversas imagens de Recife (PE) nas décadas finais do século XIX.

Rua da Cadeia. Recife (PE), Brasil, circa 1880 (Moritz Lamberg/Acervo IMS)
1

Para se orientar no deserto da Austrália, os aborígenes usam canções que nomeiam um caminho desbravado por ancestrais. Esquecer parte dos versos, que formam uma espécie de trilha a partir de paisagens cantadas em sequência, significa errar o caminho em meio a uma área de centenas de milhares de metros quadrados.

 

2

Quando apresentei um amigo alemão ao meu pai, os dois conversaram por alguns minutos e esse amigo disse: ele usa termos que não existem mais. Eram termos da Berlim dos anos 1930, época em que meu pai veio ao Brasil fugindo do nazismo, e depois da morte dele – em setembro de 2010 – algo da cidade que foi fisicamente destruída na guerra deixou de existir mais uma vez.

 

3

Uma língua pode ser um mapa ou um museu. Botar no papel o que um casal separado nunca mais dirá, os pequenos apelidos e gírias que só fazem sentido para ambos, e mesmo as entonações e silêncios que comunicam tanto quanto a gramática, é como escrever um dicionário em negativo, uma lista de objetos e situações amorosas que ao serem lidas – ao menos por esse casal – passam a significar o seu oposto.

 

4

Numa das últimas entrevistas de Kurt Cobain, poucas semanas antes do suicídio, as palavras que ele escolheu para descrever o momento foram “minha saúde está ótima”. Ele estava mentindo? Quer dizer, a saúde não poderia estar de fato ótima naquele dia se as dores de estômago tivessem dado uma trégua, ou se não houvesse vestígio de pânico, ansiedade, depressão? Ou aquela sequência de um pronome, um substantivo, um verbo e um adjetivo foi mesmo o que muitos fãs do Nirvana acreditam, um pedido de socorro?

 

5

A língua pode ser uma tentativa de se libertar ou uma prisão. Em As Cidades invisíveis, romance em que Marco Polo descreve para Kublai Kahn as dezenas de lugares onde esteve, há uma passagem em que o imperador pergunta por que os dois nunca trataram de Veneza. Marco Polo responde que deseja manter ilimitada a ideia que tem de sua cidade natal, e que se falasse dela diretamente – transformando casas e bairros nas palavras que os definem – estaria “cancelando as margens da memória”.

 

6

Há muitas maneiras de esquecer e lembrar, mas a expressão de todas elas é necessariamente incompleta: um universo inesgotável de emoções se atém aos contornos mais estreitos de um instrumento, a linguagem. Então, ecoando Calvino, Proust, Piglia e tantos outros, quem escreve está sempre acima ou abaixo do seu meio, uma forma de ser estrangeiro no próprio idioma porque é preciso traduzir esse mundo interno para outro código.

 

7

A língua podem ser apenas palavras, e as palavras podem ser apenas sílabas formadas por letras no papel ou na tela, a impressão em tinta ou pontos luminosos compostos de micropontos de oito bits – uma notícia que você intui antes mesmo de encontrar esta carta num envelope, no computador, no celular.

 

8

A língua pode ser um cemitério, um inventário burocrático de ausências: desde que tive alguma noção do mundo perdi não apenas meu pai, mas minha avó, amigos e namoradas. Também coisas menos importantes, mas que na época podiam ser tanto quanto, ao menos no sentido de que o vocabulário usado para definir sua falta –  “despedida”, “choro” – é o mesmo: fotografias, alguns empregos, a cidade onde nasci e fui criado, um time de futebol de botão.

 

9

Como dizer o que preciso dizer? Desde 1994 Ruanda discute o nome do massacre que começou no dia em que Kurt Cobain deu um tiro na cabeça. Desde 2018 o Brasil discute se nazismo é um termo histórico ou define algo de nosso cotidiano atual. Palavras podem ser um sinal de respeito ou leviandade, e usar exemplos como esses é adequado ao tamanho do que digito aqui, ouvindo o vazio das ruas desertas antes de pegar minhas coisas e ir embora?

 

10

Hoje está fazendo um dia bonito. Li na meteorologia que a temperatura é de vinte e quatro graus. Todos esses anos, tudo o que a gente fez e viveu, a casa, as conversas, as brigas, os dias que passaram e nunca vão passar, e a língua pode ser apenas um longo ensaio para chegar a um conjunto de fonemas que começa numa vogal tônica e termina numa consoante surda. Uma palavra com o poder de apagar um rosto e uma voz, o que aconteceu e daqui a pouco não terá mais acontecido, a não ser neste texto que você talvez esqueça como eu esquecerei de tê-lo escrito: adeus.

Michel Laub é escritor e jornalista, autor de O tribunal da quinta-feira (Companhia das Letras, 2016), O diário da queda (Companhia das Letras, 2011) e outros seis livros. (Foto: Renato Parada)