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Lisbela na companhia de Autran

06 de setembro de 2016

Dentre os quase 5.000 documentos que compõem o arquivo do ator Paulo Autran, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2007, estão milhares de registros de peças nas quais ele brilhou com talento único. Uma delas foi Otelo, de William Shakespeare, na qual Autran fazia o personagem-título. O espetáculo marcou a estreia, em 1956, do grupo que formou ao lado de Tônia Carrero e Adolfo Celi, e que se tornaria uma das maiores e mais bem-sucedidas companhias teatrais do país: a Companhia Tônia-Celi-Autran.

 

Tônia Carrero, Paulo Autran e Osman Lins. Acervo Paulo Autran/ IMS

 

A CTCA também ia além dos clássicos e buscava textos de novos autores. Dois concursos nacionais de teatro promovidos pelo trio em 1958 e 1959 estão entre as principais realizações da companhia. Em sua fotobiografia Paulo Autran – sem comentários, o ator, nascido em 7 de setembro de 1922, conta que a CTCA recebeu mais de 150 peças em cada um dos concursos. “No segundo revelou-se o talento de Osman Lins com a sua deliciosa comédia Lisbela e o prisioneiro, que levamos na íntegra, com sucesso. É uma joia de peça. Celi quis que eu fizesse inicialmente o Vendedor de Passarinhos e deu o Prisioneiro a Ivan Cândido. Depois de algum tempo trocou nossos papéis. Eu adorei, é claro. Era o primeiro galã típico de minha carreira. A peça foi um sucesso estrondoso”.

Como o prêmio do concurso era a montagem do texto pela companhia, a peça – que seria adaptada por Guel Arraes para a TV Globo em 1993, e para o cinema em 2003 – estreou no dia 13 de abril de 1961, no Teatro Mesbla, do Rio de Janeiro, sob a direção de Adolfo Celi e Carlos Kroeber, com cenários e figurinos de Aloísio Magalhães, um dos principais designers gráficos do país. Além da qualidade excepcional do elenco, com destaque para Ivan Cândido, que ganhou, naquele ano, o prêmio de melhor ator coadjuvante por seu papel, a peça foi escolhida pela direção de O Estado de S. Paulo para ser representada no Teatro Municipal da cidade na entrega do 10º Prêmio Saci, criado pelo jornal para laurear os melhores do teatro e do cinema brasileiros. O texto introdutório do folheto distribuído na noite da apresentação é do crítico teatral Decio de Almeida Prado, cujo acervo também se encontra sob a guarda do IMS, na época diretor do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.

 

Ivan Cândido e Paulo Autran na peça Lisbela e o prisioneiro. Acervo Paulo Autran/ IMS

 

Tônia Carrero, que foi substituída quando precisou se ausentar, inspirou uma resenha apaixonada de Van Jafa publicada no Correio da Manhã no dia de estreia da peça: “Lisbela é Tônia. Dito Tônia está dito tudo. Lisbela é bela. Bela e Tônia são sinônimos e pleonasmo que ganham em Lisbela vivência e personagem”. Paulo Autran também recebeu críticas entusiasmadas, que elogiavam desde o seu domínio de voz à atuação como um todo. Um dia depois da estreia, Marcos Andra escrevia no jornal O Globo: “Paulo Autran também está estupendo no papel do prisioneiro, misto de sonhador, aventureiro e rufião. Esplêndido!”.

 

Paulo Autran e Tônia Carrero na peça Lisbela e o prisioneiro. Acervo Paulo Autran/ IMS

 

Essa não seria a última parceria entre Paulo Autran e Osman Lins, que havia recebido menção honrosa no primeiro concurso da CTCA com o poema dramático O vale sem sol. Seu conto “A partida”, publicado no livro Os gestos, de 1957, e depois incluído em Os cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, deu origem ao curta-metragem homônimo da cineasta pernambucana Sandra Ribeiro. No elenco, estavam Paulo Autran e a atriz Geninha da Rosa Borges, prima do ator e amiga de Osman Lins. Os dois se conheceram em Paris, quando ambos estudavam na França e Lisbela estreava no Rio de Janeiro.

Desconhecido do público até aquele momento, o jovem dramaturgo de Santo Antão, onde se passa a história de Lisbela, também foi saudado por muitos críticos que elogiaram “a boa qualidade literária e a madureza da técnica teatral”. Até mesmo Barbara Heliodora, conhecida como a “Dama de Ferro” da crítica teatral brasileira, teceu elogios à peça e seu autor. Além de recomendar o espetáculo sem ressalvas, a rigorosa crítica, na época escrevendo para o Jornal do Brasil, defendeu a peça como a melhor comédia de 1961: “No princípio do ano a Cia. Tônia-Celi-Autran montou uma raridade, uma excelente comédia nacional, Lisbela e o prisioneiro, de Osman Lins. (…) A não ser por Martins Pena, falecido de algum tempo a esta parte, o ano passado não viu, em nossos palcos, riso tão sadio e alegre em espetáculo nacional. Estava na cara que era a melhor comédia do ano”, afirmou em crônica do dia 8 de fevereiro de 1962.

Embora tenha escrito outras peças, além de contos e ensaios, Osman se destacaria no gênero romance, ao qual se dedicou desde 1955, quando estreou com o premiado O visitante: “O que sou mesmo é romancista. Se não houvesse teatro, eu não o inventaria. Mas creio que inventaria o romance”, disse ele, ainda na ocasião do lançamento de Lisbela. E foi o que fez, de certa maneira, com a obra-prima Avalovara, de 1973, em que inova a prosa de ficção no nível mais profundo da estrutura narrativa. Sobre ela, afirmou Julio Cortázar: “Se eu tivesse escrito esse livro, poderia passar mais 20 anos sem fazer mais nada”.

 

Programa da montagem de Lisbela e o prisioneiro que estreou em 1961:

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