No dia 2 de janeiro de 1945, Mário de Andrade escrevia a primeira carta do ano que seria o último de sua vida. O destinatário era o jovem historiador mineiro Francisco Iglésias, que ele tinha conhecido na visita que fizera a Belo Horizonte meses antes e que tomara a iniciativa de inaugurar o diálogo pelo correio. Durante as chopadas nos bares da capital mineira, Iglésias tinha se mantido reservado, como era seu estilo, mas o remetente vira nele um interlocutor de futuro. Nessa carta resposta, Mário aceitava uma troca epistolar que certamente aumentaria os milhares de cartas que, como remetente ou destinatário, colecionava àquela altura de vida de 52 anos incompletos.
“Sofro de gigantismo epistolar”, declarou ele mais de uma vez. Desse modo, havia coerência nos planos de intensificar a correspondência no ano que começava. Planos que seriam dissolvidos pouco mais de um mês depois, quando, no dia 25 de fevereiro, a morte o carregou.
Sem imaginar o fim da vida tão próximo, prometia ele ao novo amigo: “Este ano vou dar um bom espaço pras cartas, me sinto tão vivendo e feliz dentro delas”. Reconhecia a isenção e a facilidade de espírito com que se dedicava à comunicação epistolar. Uma ideia se desenrolava fácil em carta ou ensaio, gêneros adequados à sua expressão crítica ou teórica – explicou a Iglésias. Diferentemente do artigo, cuja limitação de tamanho imposta pelo jornal resultava em angústia ou embotamento para ele. Esse tipo de produção o tolhia – afirmava ainda, a despeito de ter escrito boas centenas de textos publicados em vários periódicos.
Quem leu sua correspondência com Bandeira ou Drummond, para citar apenas duas, constata a naturalidade com que seu pensamento evoluía, fosse nas palavras bem alinhadas em muitas folhas de papel, ou nas páginas datilografadas que enviou a seus pares. Constituíram-se, com frequência e vigor, um dos meios pelos quais difundiu o ideário modernista por todo o Brasil.
As quatro páginas manuscritas a Iglésias tratam, em grande parte, do desenvolvimento de uma ideia lançada pelo amigo, que, na carta inaugural, referia-se ao “exemplo mais alto do que é uma existência de homem de estudo, de artista, de ação, ou de homem, simplesmente”.
Foi o bastante para que Mário passasse a formular o conceito de “homem, simplesmente”. Para ele, a distinção entre o artista, ou o cientista, do homem era invenção nova. Um não se separa do outro; são amalgamados, compõem um ser indivisível:
Só existe uma coisa, Iglésias, e você tem razão: é o homem, simplesmente. Ninguém é em dois homens, o artista e o homem. Tudo é um só, e o artista, o cientista não é senão uma qualificação profissional do homem. E uma qualificação jamais desclassificou o homem. E esse hiperindividualismo do artista e do cientista é uma invenção recente. Alguns dos tortuosos separadores do homem de arte não deixam de perceber a falcatrua que fazem de si mesmos.
Naquele momento em que escrevia a Iglésias, talvez Mário não suspeitasse a morte próxima, embora Drummond lembre o contrário em A lição do amigo, quando transcreve trecho de Gilda de Mello e Souza a respeito da intuição marioandradiana. Morreu de repente – pensava Gilda –, mas começara a fazer o balanço da vida a partir da análise que resultou na famosa conferência “O movimento modernista”, texto em que reflete com lucidez arrasadora sobre a revolução estética de que fora o mentor intelectual. Se quisermos ir mais adiante, começara mesmo a dar o balanço por meio da autoanálise do período em que morou no Rio de Janeiro, os três sofridos anos de 1938 a 1941. Tomou consciência da sua fragilidade emocional, entendeu a incapacidade de viver fora de São Paulo. Preparava-se. A Paulo Duarte confessava querer viver até os 55 anos, mas sentia que se acabaria “um pouco antes do tempo”. Foi profético.
Como acontece com todo grande artista, no aniversário de morte é a vida que se impõe. Neste 25 de fevereiro, quando se registram 70 anos da morte de Mário de Andrade, assim como ao longo do ano, muito se falará sobre o escritor paulista. Do modo como ele desejou: a vida por meio da “qualificação profissional do homem”, que se traduz, nesse caso, pelas reedições de sua obra em prosa e verso; pela publicação da correspondência, fonte de seu pensamento estético e revelação do homem “torrencial e vário, sincero e ladino, digno sem se pretender infalível, acolhedor mas rigoroso”, nas palavras de Moacir Werneck de Castro.
Dessa maneira, continua inteiro, “homem simplesmente”, de acordo com o conceito que definiu a Iglésias na carta inédita que se reproduz aqui.
Elvia Bezerra é coordenadora de Literatura do IMS.
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