A série Primeira Vista traz textos de ficção inéditos, elaborados a partir de fotografias selecionadas no acervo do Instituto Moreira Salles. O autor escreve sem ter informação nenhuma sobre a imagem, contando apenas com o estímulo visual. Em dezembro de 2019, o escritor Marcelo Moutinho inspirou-se numa foto de Stefania Bril (1922-1992) para escrever o divertido conto “Minestrone”. Nascida na Polônia, Stefania participou ativamente da história da fotografia no Brasil, onde chegou em 1950, não apenas como fotógrafa, mas também como editora, crítica, curadora e coordenadora de iniciativas de difusão e reflexão sobre a área. O arquivo no IMS é composto por negativos, ampliações e produção textual de sua autoria, além de fotografias de terceiros e correspondências, entre outros itens. Em 2019, sua obra foi tema da Bolsa IMS de Pesquisa em Fotografia.
Estávamos num bistrô cujo nome não lembro, eu apagado no carrinho, mamãe e papai sentados à mesa bebendo vinho e conversando sobre os preços da minha futura creche, quando fui despertado por um cheiro inédito. São muitas as coisas inéditas para um bebê que soma apenas sete meses, mas nem todas memoráveis.
Mamãe percebeu meu despertar, me tirou do carrinho e pôs no colo, com minha cabeça pendida sobre seu pescoço. O perfume dela eclipsou o cheiro anterior. Me mexi, para demonstrar inquietação, ensaiei um princípio de choro, até que o objetivo foi alcançado. Ela me virou de frente e pude aspirar novamente o cheiro pré-perfume. Vinha, notei, de um dos pratos dispostos sobre a mesa. Quer provar o cordeiro, amor?, mamãe perguntou ao papai, e o cheiro ganhou nome. Quero. Gostou? Espetacular, devia ter pedido o mesmo, não o ratatouille. Prova a batata gratinada. Os dois trocavam afetos gastronômicos, atiçando ainda mais minha vontade de colocar na boca um naco daquela carne cheia de suco e envolvê-la entre as gengivas sem dente.
Para um ser humano restrito ao sabor do leite materno ou, pior, do leite em pó, a experiência de imaginar o gosto de um cordeiro com batata gratinada é quase bullying. Meu protesto foi passar o jantar berrando no último volume. Se não poderia participar daquele prazer, que a família fosse solidária, ainda que a fórceps. Mamãe tentou de tudo. Engatou minha boca em seu peito, caminhou pelo restaurante balançando o corpo para me ninar, fez carinho nas minhas sobrancelhas. Chorei até ficar exausto. Eles pediram a conta sem direito a sobremesa. Era o que me faltava...
Depois do traumático jantar, passei a ter uma atenção mais detida ao cheiro das comidas que me rodeiam. Meus pais têm o costume de ir a restaurantes, alguns bem chiques, e fui conhecendo novos pratos. O magret de pato, o polvo à lagareiro, as vieiras grelhadas. Chego a sonhar com o gosto do café, mesmo sem conhecê-lo. Com o sabor da pipoca salgada, ou do bife de fígado acebolado. A boca se enche de saliva. E vem a mamadeira.
Certo dia ouvi o papai comentar sobre a história de um livro cujo protagonista é um feto que gosta de vinho. Do interior da barriga, o embrião de gente prova por tabela as diferentes uvas, a ponto de desenvolver um paladar próprio. No meu caso, e sou bem mais velho que um feto, o paladar só conhece as variações do leite. Duas. Por isso almejo os pratos que despontam à frente, visualmente mais elaborados, mais coloridos e, sobretudo, mais sofisticados sob o ponto de vista da fragrância. Tudo bem que, tendo o cheiro do leite como referência, qualquer alternativa vence por nocaute.
Minha irmã, que agora se debruça no peitoril ao lado da mamãe, não estava no restaurante na fatídica noite do cordeiro com batatas gratinadas. Ficara na casa de uma amiga do colégio. Segundo disse aos meus pais, precisava fazer um trabalho em dupla sobre a nova geografia mundial, algo do tipo. O nome dela é Isabelly. Já decidi que, assim que conseguir falar, escolherei um apelido. Tenho senso estético suficiente para me recusar a falar um nome pedante como Isabelly. O meu é Lucca – com dois cês, como a mamãe sempre faz questão de pontuar. Não é lá um primor, mas melhor que Isabelly, com certeza.
Pois bem. A Isa, chamemos assim, foi quem deu o alerta quando há pouco comecei a fazer meu showzinho. Mamãe imediatamente se aproximou, perguntou o que aconteceu, fofura?, checou se a fralda havia vazado, ameaçou me tomar nos braços, e acabou sendo interrompida nesse ensaio de acalanto maternal pela minha irmã.
Olha! A mamadeira do Lucca caiu lá embaixo!
Daqui vejo as duas deitadas de bruços tentando entender como afinal a mamadeira cheia de Aptamil Premium 2, vitaminado e insípido, saiu do meu carrinho, alçou voo e foi parar no piso inferior do parque.
Eu sei. Sim, sei o que aconteceu.
Não tenho como contar a elas, a possibilidade da palavra oral ainda é para mim tão distante quanto aquele prato de cordeiro. O que me faz soar irritantemente precário. Toda essa admirável capacidade de raciocínio que vocês podem acompanhar embotada por apenas um senão: a debilidade da língua. Então eu choro. Choro para me comunicar, para pedir leite – fazer o quê? – e choro também para confundir os adultos, analisar seu comportamento diante do indecifrável. Uma prerrogativa que nós, os bebês, temos. Quanto mais tentam me acalmar, quanto mais discutem sobre o motivo da lamúria do pequeno Lucca, mais aumento o volume. A experiência do labirinto é divertida quando se está fora dele.
Ainda com as barrigas sobre o peitoril, mamãe e Isa olham para baixo. A perplexidade diante da mamadeira despencada no abismo não se deixa ver nos rostos, mas explica os longos minutos até que se toquem de que o bebê – eu – continua a chorar. À direita, de pé sobre a mureta e malandramente escondido, o autor do crime as observa. Foi ele quem há pouco enfiou a mão dentro do meu carrinho e arrancou a mamadeira, aproveitando-se da distração da mamãe e da Isa. Depois a atirou no vazio.
Elas papeavam sobre o que fazer na sequência da visita ao parque. O almoço com papai numa churrascaria, ou na nova cantina italiana que abriu perto de casa. É especializada em massa com frutos do mar, seu pai adora. E você pode comer uma lasanha. Mamãe, sempre zelosa.
Talvez cancelem a ida ao restaurante por causa do caso da mamadeira. Não sei. Nem condeno o garoto, pelo contrário. Por galhardia, sem saber, ele fez o que eu durante toda a vida tive vontade de fazer, embora sem força para tal. De minha parte vou continuar chorando. E torcendo. Vai que, na falta do Aptamil, me oferecem uma opção digna. Se dentes não há, um minestrone serve.
Marcelo Moutinho nasceu no Rio de Janeiro, em 1972. É autor dos livros Ferrugem (Record, 2017) – vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional –, Na dobra do dia (Rocco, 2015), A palavra ausente (Rocco, 2011), Somos todos iguais nesta noite (Rocco, 2006), entre outros. O mais recente, Rua de dentro, sai em janeiro de 2020 (Record). (Foto de Leo Aversa)