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O Brasil de Thomaz Farkas

24 de outubro de 2019

Em 1971 fiz o vestibular para a Faculdade de Arquitetura. Fui aprovada na novíssima Escola de Arquitetura de Santos, onde alguns “exilados da USP” encontravam espaço para suas aulas e pensamentos. Durante o primeiro semestre as aulas transcorreram normalmente, mas no segundo alguns professores foram afastados, sobrando muito tempo para atividades sugeridas pelos alunos. Organizei um cineclube (comuns neste período) e, recomendada pelo professor Gabriel Borba, fui até a Fotoptica na rua Conselheiro Crispiniano para alugar filmes. Na loja encontrei documentários da Caravana Farkas e o próprio Thomaz Farkas (1924-2011), que me sugeriu alguns curtas. Levei os filmes, projetores e fui para Santos. Assim começou minha relação com a fotografia e o cinema. E, sem saber, com o Thomaz.

No segundo vestibular, entrei na USP, na FAU. Fui aluna de Cristiano Mascaro no Laboratório de Recursos Audiovisuais, de onde também me tornei monitora, junto com João Musa, que fazia a Politécnica. Organizávamos atividades, exposições, grupos de estudo com os alunos e agregados. Entre eles estavam Arnaldo Pappalardo, Andre Poppovic, Sergio Burgi, João Sócrates de Oliveira, Leonardo Crescenti, Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Raul Garcez, Antonio Saggese, Patrícia de Filippi e Kenji Ota.

No final do curso, por indicação de Cristiano e Renina Katz, reencontrei o Thomaz, que procurava alguém para organizar a primeira galeria de fotografia em São Paulo. Organizamos juntos. A galeria Fotoptica desenvolveu um trabalho pioneiro na difusão do fotógrafo como autor de ensaios. O espaços existentes até então eram para trabalhos aplicados a publicidade, jornalismo, moda ou editoriais em revistas ou jornais impressos. Inicia-se no momento em que a fotografia ganhava certo protagonismo nas artes visuais.

Autorretrato,1942. São Paulo, SP. Foto de Thomaz Farkas © Thomaz Farkas State / Acervo IMS
Autorretrato,1942. São Paulo, SP. Foto de Thomaz Farkas © Thomaz Farkas State / Acervo IMS

 

Foi depois de anos de convivência e trabalho, quando já não trabalhava mais na galeria, que descobri que ele escondia numa sala climatizada, onde guardava seus equipamentos, um vasto acervo de produção pessoal de fotografias. Organizadíssimos, os negativos 35mm preto e branco estavam em caixas de papel fotográfico com as respectivas cópias de contato. Tudo catalogado e muito bem conservado. Continham uma diversidade de assuntos, desde retratos a fotos do centro da cidade de São Paulo. Junto dos negativos havia carrosséis de projetores de cromos 35mm com diversas imagens de viagens. E assim fiquei sabendo que o Thomaz era também um grande fotógrafo. No trabalho dele estava contido tudo o que ele me havia apresentado de ensaios de outros autores, seus contemporâneos, como Chico Albuquerque, José Medeiros, Otto Stupakoff, German Lorca, Gaspar Gasparian, Hélio Oiticica e muitos mais. Retratos de família, de amigos, fotografias do centro de São Paulo, arquitetura do Rio de Janeiro, saídas com o Foto Cine Clube Bandeirante, artistas, bailarinos, a inauguração do Estádio do Pacaembu, a construção de Brasília. Um mundo de imagens inéditas.

Vou destacar aqui dois pólos de seu trabalho: as fotografias surrealistas e as viagens pelo Brasil. Elas são uma referência para a fotografia brasileira contemporânea.

Os ensaios surrealistas eram realizados ainda na casa dos seus pais, com seu gato, com ele mesmo e sua sombra, com amigos e colegas da Politécnica. Deles, fico a imaginar, nasceram alguns retratos e autorretratos com densas sombras, em jogos de contraste intenso que só viriam a ser feitos muito posteriormente. O material do final da década de 1940 é denso. Em preto e branco, retrata momentos tensos e de repressão.

O surrealismo surge na arte como forma de resistência a restrições de ação e pensamento, a exemplo do surrealismo em Lisboa, representado na obra fotográfica de Fernando Lemos no período salazarista. Assim como nas fotografias do artista português, também realizadas na década de 1940/1950, estas imagens do Thomaz indiciam, com sarcasmo, em montagens e encenações, a necessidade de criar um canal de abertura dentro de um panorama de repressão e confinamento de ideias e iniciativas.

O Thomaz falava pouco de si e do seu trabalho. Preferia relembrar a época, os amigos, as viagens, o panorama cultural. Tendo crescido e chegado à adolescência ao longo do Estado Novo, na USP ele estudou nos difíceis anos da Guerra e de grandes transformações no ensino técnico, quando a Politécnica era dirigida pelo brilhante professor Paulo de Menezes Mendes da Rocha (pai do arquiteto Paulo Mendes da Rocha). A escola de engenharia era conhecida como um pólo de resistência intelectual e de grandes nomes da ciência e da tecnologia.

Durante a ditadura militar muitos brasileiros deixaram o país. Era o início do exílio que atingiu parte da população, sobretudo intelectuais da classe média, em razão de suas posições políticas. Ao lado das prisões, torturas e assassinatos, o exílio teve a função de afastar os opositores do regime. Mas nem todos exilados enquadraram-se nesse caso. Alguns já tinham resolvido ir embora logo que o presidente João Goulart foi deposto. Na contramão das saídas para o exterior, Thomaz empreendeu uma aventura em direção ao Brasil profundo, numa viagem exploratória com Geraldo Sarno e Paulo Rufino, em 1967 e 1968.

A primeira ideia era filmar em Pernambuco as Ligas Camponesas de Francisco Julião, que lutavam pela desapropriação das terras no Engenho Galileia (a primeira desapropriação de terra no Brasil após a Segunda Guerra Mundial). Mas a repressão chegou antes, surpreendendo outro documentarista, Eduardo Coutinho, que filmava a viúva do líder Julião no local. O rumo da Caravana Farkas então mudou para o Ceará, Maranhão e Paraíba, dedicando-se a documentar o Brasil para os brasileiros, juntando-se a eles Sergio Muniz, Paulo Gil Soares, Edgardo Pallero, Affonso Beato, Lauro Escorel e Sidnei Paiva Lopes.

Até o final década de 1960 os brasileiros não conheciam o Brasil, não existia a rede de transmissão de televisão nas dimensões dos anos 1970. Thomaz queria mostrar o gaúcho para o nordestino, o paulista ao mineiro e assim por diante. Munido de um estudo sobre as características do Brasil, publicado por um professor de geografia, o grupo inicial foi ao encontro de Maurice Capovilla e Vladimir Herzog, que tinham vindo da Escola de Cinema de Santa Fé, na Argentina. Nasceu o plano: pegar o equipamento, embarcar na camionete C14 da Chevrolet e viajar Brasil adentro. Thomaz se tornava o produtor da Caravana Farkas. Foram feitos 39 filmes entre 1964 e 1980: curtas de 10 a 40 minutos e longas-metragens.

As viagens foram documentadas pelo Thomaz fotógrafo, que ainda atacava de produtor e motorista. Feitas em Kodachrome (e nunca mostradas até 1997, quando o forcei a abrir as caixas escondidas), as imagens mostram um Brasil que não mais teremos chance de conhecer em cores ou em preto e branco. Viagens documentais no mais estrito senso da palavra. O que viesse merecia ser documentado como viesse, sem interferências ou roteiro. O Brasil com as chuvas brancas da Amazônia, o sol a pino do Nordeste. Imagens que acompanham o tempo particular do barqueiro, o mateiro, o rastejador, as morenas baianas e cariocas, o carnaval de rua, a alegria natural e sem compromisso das cores brasileiras. As festas das pequenas cidades do Cariri com as peles secas e sem cor.

O Thomaz deixou um legado importante sobre um modo de resistir à pequenez, construindo narrativas subjetivas na fotografia em preto e branco, incluindo especialmente as fotografias surrealistas dos anos 1940. No contexto dos anos 1960 e 1970, ele elaborou um modelo de produção que aliou a crença na execução de projetos autorais e de pesquisa de linguagem, equipes reduzidas e um ideal de otimização do tempo para filmagem e finalização, em um orçamento enxuto.

A escolha destes dois tempos do seu trabalho é para lembrar também do Thomaz comprometido com a cultura brasileira. Do jeito dele. Sem radicalismo, pronto para estar nos lugares estratégicos com seu tipo tranquilo e brincalhão, trabalhando com e para os amigos, construindo um território para o cinema e a fotografia, para o reconhecimento profissional das categorias, na conquista de novos espaços de divulgação e disseminação de uma produção da arte e da cultura.

Brasil adentro, pelo Brasil afora.

Viva o Thomaz!

Rosely Nakagawa

Rosely Nakagawa coordenou exposições na Galeria Fotoptica desde sua fundação, em 1979, até 1986. Vem atuando como coordenadora de projetos de diversos fotógrafos brasileiros e, mais recentemente, do português Fernando Lemos. Realizou a primeira curadoria da obra de Farkas para a exposição Thomaz Farkas, fotógrafo, exibida no MASP em 1997, além de outras quatro mostras e três livros produzidos integralmente com fotografias do artista. (Foto de Miguel Gonçalves Mendes)