Há uma paixão que arde sempre renovada por uma vida inteira: é a do crítico especializado pela obra que o seduz: “Nunca se volta de Euclides sem ter alguma coisa nas mãos, seja poesia, ideias, arte de linguagem, história, algo de ciência, e até mesmo um pouco de ficção…”, declarou Olímpio de Souza Andrade, um dos maiores estudiosos da obra e da vida de Euclides da Cunha, em seu reconhecido História e interpretação de Os Sertões.
De acordo com o termo “crítica”, que encerra em si a noção de avaliação, o crítico é alguém que emite juízos sobre uma obra de arte. Ao longo da História, as obras literárias foram avaliadas à luz de vários critérios, que mudavam de acordo com a época. Houve um período em que, por certa imprecisão metodológica, esses critérios se apoiavam no olhar subjetivo do crítico, que frequentemente confundia juízos críticos com juízos de valor e pouco se detinha no estudo da obra propriamente dita.
Apenas no século XX, a subjetividade crítica passou a coexistir com métodos mais precisos de análise, que consideravam a materialidade do texto, sua forma e seus mecanismos de composição. A leitura crítica, segundo essa perspectiva, se tornou um complexo exercício de análise, que fez do crítico não só um intérprete da obra, mas um recriador desta, um “leitor cúmplice”, como diria Julio Cortázar, ou ainda um coautor.
É nesse sentido que Olímpio de Souza Andrade é o coautor d’Os sertões e, de certa maneira, de toda a obra euclidiana à qual se dedicou com afinco e paixão até se tornar indispensável na bibliografia especializada no escritor de Canudos. Uma das poucas obras que escreveu longe da influência euclidiana foi O livro brasileiro: progresso e problemas 1920-1971, estudo sobre a indústria do livro, publicado em 1974, mas já conhecido desde 1956, em uma versão menor, publicada como separata do número 37 da Revista do Livro, do Instituto Nacional do Livro.
O “livrinho”, que representou “uma pausa na redação do meu adeus já demorado à obra de Euclides”, se tornou tema da carta a Carlos Drummond de Andrade, de 28 de novembro de 1974, que inaugura uma pequena e afetuosa correspondência epistolar com o autor de A rosa do povo. O tom é respeitoso e repleto de profunda admiração: “O livrinho, vai, portanto, para ser visto se possível, assim-assim, em diagonal, esperando não tomar tempo ao poeta, ao seu convívio com a beleza, aos seus privilégios de ver o que os outros não veem, sofrendo e nos transmitindo o indizível das dores humanas”.
A resposta de Drummond veio no dia 26 de fevereiro de 1975, e não poderia ser outra: “Que lúcida, fundamentada e oportuna mise au point dos problemas do livro brasileiro você realizou em seu mais recente trabalho!”.
Desde 1967, quando endereçara a Olímpio um cartão em que agradecia pelos três volumes consagrados a Euclides da Cunha, o poeta já declarara sua admiração pelo trabalho do pesquisador:
Conhecedor, há muito, de sua devoção euclidiana, que não é culto emocional mas esforço de pesquisa, análise e divulgação da obra, tenho agora ensejo de manifestar a você, em papel passado, meu enorme apreço a seu trabalho, em que a probidade, a lucidez e o senso crítico se aliam sob a influência daquele intelletto d’amore que você recomenda para perfeita assimilação do ensinamento de Euclides.
Não é pouco. Afinal de contas, “intelletto d’amore”, palavras usadas pelo poeta italiano Dante Alighieri no primeiro verso de uma canção da Vita Nuova para se referir ao conhecimento cabal do amor derivado da experiência sensível, se transforma aqui na expressão perfeita para se referir à inteligência amorosamente aplicada ao estudo da vida e da obra de Euclides da Cunha por Olímpio de Souza Andrade.
Quando, em 1975, Drummond recebe do amigo os exemplares de Caderneta de campo e Contrastes e confrontos, onde, afirma Olímpio, só entrou “com a nota marginal, a pedido do editor, porque tinha notícias de interesse a transmitir”, mais uma vez o poeta se converte em crítico e não poupa elogios: “Nem sei o que mais agradecer a você […]. Restaria ainda por agradecer esse serviço que você presta à memória de Euclides da Cunha, e que importa em dívida nacional para com o pesquisador incansável e o analista igualmente extraordinário da obra euclidiana, em que você se converteu. Sim, meu caro, é preciso que alguém o proclame: a memória literária de Euclides encontrou, afinal, o zelador e revelador de que estava carecendo”.
Somente o “poeta maior” poderia ter escolhido palavras tão adequadas para falar do trabalho de um dos nossos maiores críticos e intelectuais brasileiros, cujo centenário se comemora neste ano, no dia 19 de dezembro. Se o trabalho crítico permanente só existe quando uma paixão o inspira, a de Olímpio foi épica e correspondeu, em força e tamanho, à de Euclides para a criação de sua obra.
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