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O poema que Bandeira não escreveu

06 de janeiro de 2020

 

Otto Lara Resende não foi um poeta. Os escritos líricos do jornalista têm um aspecto amador na forma e no conteúdo. Nenhum pecado, deve-se ressaltar. Quem nunca rascunhou uns versos? O contista não hesitou ao escrever poemas que, se não primam pela qualidade estética, mostram o perfil inteligente e sensível do mineiro. É o caso de “Estrela da noite”, de 1969, obra dedicada a Manuel Bandeira, que morrera no ano anterior.

O escritor assina o poema de Lisboa, na madrugada de 19 de abril. Neste ano, Lara Resende, à época no Jornal do Brasil, publicaria uma edição do livro de contos O retrato na gaveta em Portugal. A obra mostra Lara Resende inconformado com a perda de Manuel Bandeira. Em vocativos desesperados, chama o nome do pernambucano quatorze vezes ao longo das duas páginas de “Estrela da noite”, guardadas no Instituto Moreira Salles.

 

     Há uma lição na sua poesia
­     – no que você quis dizer –
     afinal: no que você disse.
     Você disse, doce Manuel: que a vida
     não vale a pena e a dor de ser vivida;
                                         que tudo
     é o mesmo que nada.

 

 

Com efeito, Manuel Bandeira deu lições de partida aos leitores, como podemos encontrar no clássico “Lua nova”, publicado em Opus 10 (1952). O recente morador da Avenida Beira-Mar, no Rio de Janeiro, observava a decolagem dos aviões do aeroporto Santos Dumont. A poesia estava feita. Assim como as aeronaves que somem entre as nuvens, desaparecemos na inexistência.

 

     Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:

     Hei de aprender com ele
     A partir de uma vez
     – Sem medo,
     Sem remorso,
     Sem saudade.

 

Bandeira estava, há muito, resignado com a finitude. Era um traço da personalidade do modernista, que podemos inferir a partir de sua biografia. Manuel Bandeira lutou contra a tuberculose desde os primeiros anos de vida. Já em 1904, a doença fizera-lhe interromper o curso na Escola Politécnica de São Paulo. A saúde frágil, com o passar dos anos, tornou-se fonte de melancolia para o poeta, que jamais cedeu à tentação de traduzir as suas agruras na morbidez poética, típica dos românticos do século XIX. Prevaleceu um conformismo de imagens brandas e delicadas. “O meu dia foi bom, pode a noite descer./ (A noite com seus sortilégios.)/ Encontrará lavrado o campo, a casa limpa/ A mesa posta,/ Com cada coisa em seu lugar.”, ele escreveu em “Consoada”.

Já Otto Lara Resende apresentou um perfil oposto. Em “Estrela da Noite”, queria saber como era a vida após a morte. Assim, apontou uma lacuna na obra bandeiriana: “o poema da morte vivida/ o poema da morte morrida/ o poema da morte depois da morte”, enumerou o jornalista ao amigo. Lara Resende abriria mão de imagens por duas vezes, em aflitivas repetições de uma mesma pergunta: “Depois me conte, Manuel: Como é a morte?” A resposta, é claro, nunca chegou. “Estrela da noite” é um poema-carta para ninguém. E sobre o nada.

A prosa de Lara Resende oferece mais pistas sobre o seu comportamento diante da morte. Não se tratava de uma visão incomum, mas a obsessão pelo tema deu traços mórbidos ao livro de contos Boca do inferno, de 1957, sobretudo quando os personagens das narrativas têm pouca idade. Lembremos do amor de Doquinha e Mário em “Namorado morto”. Os desejos tórridos da menina de 11 anos eram castrados, à moda lacaniana, por sua mãe. Desde o arranque do conto, escrito em linguagem simples e direta, como mandam os manuais jornalísticos, o leitor depara-se com imagens de um personagem no caixão, entrecortadas pela descrição do encantamento de Doquinha por Mário. Nas últimas linhas do conto, aparece o escapismo romântico. “– Mamãe – repetiu Doquinha. – Eu quero morrer.”

Se os autores deixaram importantes reflexões para a literatura, pouco importou o comportamento adotado por cada um, no fim das contas. Em carta de 19 de outubro de 1968 publicada no Correio IMS, o escritor e médico Pedro Nava descreve a missa de sétimo dia de Manuel Bandeira a Joanita Van Ittersum, filha de Fréddy Blank, com quem o poeta pernambucano tivera um relacionamento amoroso. Na celebração, estavam presentes personalidades de peso, como Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz e Di Cavalcanti.

 

Os jornais desde o dia da morte estão cheios de glorificações, e o fa­to de se saber terminados os sofrimentos do nosso amigo é o maior consolo para todos os que o admiravam e queriam. Ele vinha arrastando uma vida de confinamento, isolamento e tristeza desde que completou os oitenta anos e que passou, aos poucos, a ser inteiramente dependente. Depois que ele teve um acidente vascular e que perdeu os sentidos, tomou verdadeiro pavor de sair sozinho e com isso foi ficando sem autonomia e numa grande solidão, pois nós tínhamos oportunidades muito escassas de obter o consentimento para vê-lo.

Dois meses antes, no mesmo ano, Manuel Bandeira havia fraturado o colo do fêmur direito, após escorregar no banheiro. Em 13 de outubro, o caso do poeta tornou-se fatal, com uma anemia aguda proveniente de hemorragia decorrente de uma úlcera gástrica. Já Otto Lara Resende teria, 24 anos depois, resposta à repetitiva pergunta que faz em “Estrela da noite”. Para nós, a dúvida persiste. Por enquanto.

 

* Gustavo Zeitel é jornalista e estagiário da coordenadoria de Literatura do IMS