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O resgate de Chichico Alkmim

22 de dezembro de 2015

Foi uma longa viagem. Começou nos anos 1920, no ateliê de retratos montado por Chichico Alkmim (1886-1978) no porão de sua casa no Beco João Pinto, em Diamantina (MG), e terminou – na verdade recomeçou – na segunda semana de dezembro de 2015 com a chegada do acervo do fotógrafo mineiro ao Instituto Moreira Salles, que agora tem sua guarda por 10 anos em regime de comodato. Os 5.549 negativos de vidro com imagens cristalinas de tipos e costumes brasileiros da primeira metade do século XX viajaram 729,3 km transportados como tesouro, sob a supervisão de Gabriella Vieira Moyle e Rodrigo Bozzetti, da Reserva Técnica Fotográfica do IMS.

A mesma dupla esteve em novembro na Bahia acompanhando Sergio Burgi, coordenador de Fotografia do Instituto, nos procedimentos de embarque em Salvador de 100 mil fotografias de Mario Cravo Neto, outro conjunto recentemente incorporado ao acervo do IMS. Ou seja, a obra de Chichico Alkmim (foto à direita) seria café pequeno para despacho, não fossem as chapas resgatadas em Diamantina de um material muito particular: “Quando a gente pensa que está lidando com vidro já começa a tremer”, brinca Rodrigo. É um tipo de negativo que, sob os cuidados do IMS, só encontra paralelo em termos de quantidade no acervo de Marc Ferrez, composto por cerca de 5 mil unidades –, só que registradas em chapas de 40 x 50cm ou 24 x 30cm. No caso de Chichico, o maior negativo mede 13 x 18cm, alguns deles armazenando até sete imagens, imagina-se que por medida de economia de material. Presume-se que nas tais 5.549 chapas que Gabriella e Rodrigo foram buscar em Minas existam cerca de 10 mil registros fotográficos da gente de Diamantina e de cidades vizinhas.

 

Auto Bonde, 1924. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Durante duas décadas, Francisco Augusto Alkmim, o Chichico, manteve o único estúdio em funcionamento naquela região histórica do Vale do Jequitinhonha. Ele mesmo pintava os painéis de fundo que serviam de cenário para poses bem compostas com figurinos e adereços disponibilizados pelo fotógrafo à sua clientela. O retratista ganhou status de artista já depois de morto com o reconhecimento de sua sensibilidade no trato com a luz e na delicadeza do olhar para o ser humano em ritos familiares e religiosos – primeira comunhão, casamento, batizado, encontro de gerações ou velórios (os “anjinhos”, tradição cristã de se eternizar em foto a pureza de crianças mortas, era uma das especialidades de Chichico).

Maria Bernadeth Alkmim, 1926. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Moças de Diamantina, s/d. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

A preocupação estética sempre foi um diferencial bem nítido entre o que se fazia naquele porão iluminado pela luz da claraboia de vidro vermelho e o simples registro de imagem que em geral se produzia no interior do Brasil. Chichico fotografava também nas ruas e arredores de Diamantina sempre focado na paisagem humana da região. Tinha também o hábito de flagrantes coletivos, reunindo dezenas de pessoas, no melhor estilo do fotógrafo peruano Martín Chambi.

Confraternização nos arredores de Diamantina, s/d. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

A memória visual de Diamantina esteve por pelo menos três décadas sob a responsabilidade de seus cliques. O cenário arquitetônico que Chichico enquadrava fora do ateliê permanece protegido desde 1999 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Quase tudo na cidade tem referência histórica: não à toa, o acervo do fotógrafo foi apresentado aos emissários do IMS por Fernando Alkmim, neto de Chichico, em um imenso salão do Instituto Casa da Glória, antigo convento do final do século XVIII, início do XIX, onde o cineasta Cacá Diegues filmou cenas de Xica da Silva. Gabriella e Rodrigo trabalharam ali durante três dias para quantificar o acervo antes dos cuidados com embalagem e acomodação em caminhão climatizado e lacrado de transportadora especializada, responsável pelo traslado até a sede do IMS no Rio.

Salão do Instituto Casa da Glória onde a equipe do IMS trabalhou em Diamantina (MG)

O material delicado permaneceu ao menos por uma década após a morte do fotógrafo guardado no porão da casa do Beco João Pinto. Sobreviveu ao tempo graças à dedicação de seus netos – além Paulo Francisco F. Alkmim, Verônica Alkmim França tem sido uma divulgadora incansável da arte do avô. Por iniciativa de Paulo Francisco e João Paulo Guimarães Mendes, foram realizadas em Diamantina nos anos 80 as primeiras exposições de fotografias de Chichico. Nos anos 90, Paulo Francisco e colaboradores da Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina, deram início a um projeto de organização, catalogação e conservação do acervo fotográfico. Tal esforço possibilitou que se chegasse à bem cuidada edição do livro O olhar eterno de Chichico Alkmim e na montagem da exposição Paisagens humanas – paisagens urbanas, que tem percorrido o circuito mineiro de arte.

Nada mal para quem nunca teve muito acesso ao conhecimento ou à tecnologia. Chichico aprendeu o ofício através de literatura básica, como o Manual Prático de Photographia (de Adalberto Veiga, 1910). Teria também frequentado em data e por tempo imprecisos o ateliê de Igino Bonfiolli, em Belo Horizonte, mas o que fez do retratista um artista de rara sensibilidade foi uma intimidade natural criada entre o olhar Chichico Alkmim e sua câmera de fole 13x18cm. O reconhecimento artístico deve ganhar novo impulso com o desembarque da obra do fotógrafo no Instituto Moreira Salles. Há muito ainda a se explorar neste acervo. Das 10 mil imagens estimadas em negativos de vidro, não mais que 200 foram aproveitadas em livro e exposições. Começa agora, na Reserva Técnica de Fotografia do IMS, o grande trabalho de tratamento de imagem e digitalização do conjunto da obra. “Vem muita surpresa por aí”, prevê Rodrigo Bozzetti.

Alfaiataria de João Antônio Ribeiro na Rua do Bonfim, 82, s/d. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Rapazes de Diamantina, s/d. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Rapaz posa com bicicleta, s/d. Ao fundo um dos painéis pintados por Chichico. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Moça posa para foto em estúdio, s/d. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

José Maria Alkmim, 1918. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

“Anjinho”, s/d. Diamantina, MG – Brasil. Fotografia de Chichico Alkmim/ Acervo Instituto Moreira Salles.

 

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