Nestes tempos duvidosos, talvez uma das poucas certezas seja que está em curso uma reconfiguração de diversas relações em nossas vidas. Algumas pessoas puderam ressignificar o conceito de “lar”, que, para além de lugar de descanso, tornou-se um espaço múltiplo de afazeres, do trabalho ao lazer. Haja espaço e haja portas para separar o público do privado. E janelas, sobretudo, para observar lá fora.
Mais que antes, a janela se converteu num objeto fotográfico tradutor de anseios, desejos nostálgicos, memórias. É o que remete a imagem a seguir, uma fotografia da poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) pelo clique intimista de Cecília Leal de Oliveira. As sensações de contemplação e espera ao então momento de captura, no apartamento em Copacabana na década de 1980, poderiam facilmente ser atreladas às impressões de hoje, em 2020.
O obturador da câmera fotográfica é também uma janela, como diz o curador britânico David Campany. Uma janela que, para ele, tem o poder de controlar a duração e o tempo de exposição: as lentes são como sua dimensão espacial, e os diafragmas podem aludir à espessura do vidro e às cortinas. As imagens ali captadas configuram posteriormente resíduos do registro de um tempo outro, já passado. Contudo, conforme anota o filósofo Etienne Samain, essas imagens não só representam as configurações sociais e históricas em que foram produzidas, mas também detêm o poder de realizar outras reconfigurações. É o caso desta fotografia do Arquivo Otto Lara Resende, de autoria não identificada, em que a visão da janela se encontra fechada por cortinas, legando a perspectiva de um horizonte ao campo da imaginação e, curiosamente, ultrapassando a dicotomia sobre a observação se encontrar dentro ou fora do espaço.
Essa mesma tendência se apresenta na fotografia janela entaipada, da coleção do arquiteto carioca Augusto Carlos da Silva Telles – referência da defesa do Patrimônio Material no Brasil. Na imagem, possibilita-se uma radicalização, em que a janela está por si só e não cumpre seu propósito arquitetônico inicial, mas sim de ideia, de signo linguístico e de memória material.
O escritor e crítico John Berger exprime o abismo que cerca a multiplicidade de sentidos numa fotografia, do elemento mais intencional ao reflexo mais instintivo do desejo. É, por isso, como uma meia-linguagem. De certo modo, como uma janela, que guarda em si não apenas o papel de intermediadora entre nós e o exterior, como, por seu recorte, a possibilidade de conectar os elementos vistos e enquadrados (podendo inclusive atuar dialeticamente em direção a uma ideia geral, a uma visão de todo). A própria arte é uma realidade fragmentada em si, mas que pode expressar totalidades.
Hoje, em qualquer janela que observemos, há indícios de histórias que não puderam ser vividas por conta da pandemia do novo coronavírus. As cidades desaceleraram aos poucos e a janela, elemento a princípio trivial e desapercebido em cada lar, se tornou onipresente, representando quase em sua totalidade o lá-fora, com suas vivências suspensas, utópicas.
Na imagem acima, apesar de a fotografia do zine Ritual – feito por Denis Fujito – apresentar uma janela no centro da imagem, ela parece cumprir papel diferente das imagens anteriores, compondo um pequeno espaço decorativo em meio à presença excessiva de máquinas e roupas empilhadas de uma lavanderia onde o horizonte é pouco percebido.
Essa experiência subjetiva do fora é o que, para o filósofo Gilles Deleuze, leva o pensamento a fluir, realçando o impensável, o invisível da visão e o indizível da palavra. A denominada “experiência do fora” é a própria criação do plano de imanência, conceito fundamental do pensamento deleuziano, que coloca o pensamento em relação direta com o nosso mundo, e não com uma transcendência metafísica, nas palavras de Tatiana Salem Levy. Pode ser também a circunstância desta fotografia a seguir, também do Arquivo Otto Lara Resende, em que a janela está posicionada diante de nós numa sala escura e, como no semicerrar de olhos, revela em seu exterior o horizonte bucólico da histórica cidade mineira.
Tendo em mente que a fotografia é um jogo de olhares com várias camadas, e que ao ser utilizada como potência narrativa traz em si a complexidade da experiência humana, que tal olhar de novo pela sua janela e fotografá-la de outros modos?
Referências bibliográficas
BERGER, J. Para Entender Uma Fotografia. São Paulo: Companhia Das Letras, 2017.
CAMPANY, D. The Lens, the Shutter and the Light Sensitive Surface. In: ELKINS, James. Photography Theory. Routledge, 2011 . Ensaio (versão expandida).
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: 34, 1992.
DELEUZE, G. Proust e os Signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, M. O Pensamento do Exterior. São Paulo: Princípio, 1990.
SALEM LEVY, T. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011.
SAMAIN, E. (Org.). Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
Mestrie em História Social pela UNIFESP, com certificação em Cultura, Memória e Patrimônio, Danny Mathias Lins é fotógrafe e colagista, pesquisando bens culturais imateriais, meio ambiente e sociedade. Compõe a equipe da Biblioteca de Fotografia do IMS
Graduada em Ciências Sociais pela UNICAMP, Maria Paula Bueno especializou-se em Gestão Cultural e Neurociência aplicada à educação e arte e desenvolve pesquisas na área de antropologia e imagem. Integra a equipe de atendimento do IMS Paulista.